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“ELES NÃO USAM BLACK TIE” – É questão pessoal e política

Em uma briga de operários sobre o melhor momento para fazer greve, Bráulio exclama “Isso não é uma questão pessoal, é política”. Na mesa de refeição, Romana assiste à discussão entre Otávio e Tião sobre a postura do pai de estar sempre atuante no movimento sindical e diz “Tem que reforçar essa porta se não ela não aguenta” após a saída intempestiva do filho batendo a porta. ELES NÃO USAM BLACK TIE é um clássico do cinema nacional por proporcionar momentos icônicos e facilmente lembrados, mas também por fazerem cenas aparentemente tão simples como as duas anteriormente citadas serem tão expressivas para o que a narrativa tem a desenvolver: trabalhar a dimensão política dos vínculos pessoais.

(© Embrafilme/ Divulgação)

Inspirada na peça teatral homônima escrita por Gianfrancesco Guarnieri, o filme acompanha a família formada pelo casal Otávio e Romana e pelos filhos Tião e Chiquinho em São Paulo na década de 1980. O filho mais velho e sua namorada Maria decidem se casar após a descoberta de que a moça está grávida. Ao mesmo tempo, um movimento grevista eclode e os metalúrgicos da fábrica local se dividem. Então, Tião, preocupado com o casamento e com o emprego, fura a greve e entra em atrito com o pai, um experiente militante sindical que já esteve preso por três anos.

Sob uma perspectiva imediata, a política na trama pode ser compreendida como a exploração dos industriais sobre os trabalhadores e a organização da classe trabalhadora na luta por seus direitos. No entanto, o diretor Leon Hirszman tem interesse em expandir a noção de político e aproximá-lo da intimidade da família dos personagens principais. À medida que os eventos se desenrolam, a montagem de Eduardo Escorel faz a narrativa saltar de alguma passagem da vida íntima para questões políticas amplas. É assim que o romance entre Tião e Maria é interrompido pela prisão de um homem negro, uma conversa entre Tião e Otávio é suspensa pela tentativa de fuga de outro homem negro perseguido pela polícia, um diálogo entre Otávio e Romana sobre seu futuro neto é paralisa pela chegada de Bráulio com a notícia de que a greve havia sido aprovada pela assembleia. Apesar de a política parecer o contrário da intimidade familiar, elas se complementam com o passar do tempo.

A complementariedade se dá pela maneira como o relacionamento entre pai e filho se torna subtexto para o conflito entre patrões e empregados. As diferenças de personalidade entre os dois personagens e as posições antagônicas em relação à greve geram instabilidade na família, pois suas crenças políticas interferem nos valores morais que ambos possuem para o cotidiano em casa. Tião pode parecer amoroso e devotado à namorada, mas, gradativamente, Carlos Alberto Riccelli o faz demonstrar um individualismo crescente (entende o direito à greve como algo apenas individual que não é exercido coletivamente e dispensa a experiência dos ensinamentos do pai) e uma postura de controle sobre Maria (ordena a ela para não participar da greve). Otávio pode sugerir um temperamento voltado exclusivamente para o sindicalismo no modo como se engaja com as lutas operárias, porém Gianfrancesco Guarnieri revela afeto e decepção pelo filho ao, respectivamente, ouvir um pedido de desculpas após uma briga e observar a decisão do rapaz favorável aos empresários (emoções que rendem a poderosa cena final entre os dois).

Romana e Maria também cumprem um papel relevante para a integração entre privado e público. A mãe pode parecer o estereótipo da mulher dona de casa que apenas cozinha, passa roupa e faz os demais serviços domésticos. Seria algo simplista para a personagem, já que Fernanda Montenegro a faz ser a base da família, entendida pela trama como uma coletividade tal qual o sindicato que precisa de um senso de organização, das boas relações de seus membros e do diálogo para a concretização de seus objetivos (ela aborda o filho, convencendo-o a se desculpar com o pai, orienta Tião e Otávio sobre medidas de segurança em dias de greve e ajuda a libertar o marido da prisão). A namorada poderia se ater à figura dependente que faz de tudo para agradar Tião, estando inclusive aberta à ideia de aborto se ele assim quisesse. Porém, Bete Mendes faz a personagem percorrer um arco de conscientização social de classe que envolve a adesão ao movimento grevista e a confrontação do namorado em virtude das decisões tomadas por ele no que se refere ao apoio do pai.

Leon Hirszman incorpora o princípio de politização da dimensão pessoal dos personagens na encenação do filme. O trabalho criativo do diretor dialoga com outras expressões artísticas que, aparentemente, não teriam ligação direta, mas se tornam coerentes para a proposta geral de pensar a política inserida em um universo cotidiano e deixando consequências profundas. A desestruturação familiar remete às histórias de tragédia shakespeariana tal qual escritas pelo famoso autor britânico, nas quais um protagonista com o qual o público pode se identificar decai por suas fraquezas e gera perdas e mortes a quem está ao seu redor. Ao mesmo tempo, a narrativa se assemelha à abordagem realista do Neorrealismo italiano, da qual o Cinema Novo, movimento cinematográfico que contou com a participação de Leon Hirszman em filmes como “A falecida” e “Cinco vezes favela“, inspirou-se. Essa inspiração se manifesta na utilização de temas sociopolíticos e no emprego de um estilo documental, ambas as características percebidas nas filmagens em locações dos operários durante seu trabalho e em greve.

O princípio da alternância entre o íntimo e o coletivo move a decupagem do diretor. A sobriedade faz com que muitas sequências sejam expressivas graças aos movimentos de câmera e a delimitação dos planos, não precisando de momentos tão verborrágicos em que os personagens têm que anunciar o sentimento geral da situação. Por exemplo, quando Romana tenta conter uma discussão entre o marido e o filho durante a refeição, é possível perceber o padrão de alternância entre closes na personagem e planos gerais sobre o cenário como um todo. Esta característica se repete em outras cenas nas quais o movimento dramático passa pela criação de um conflito maior e pelo reconhecimento do estado de espírito dos personagens. Outra abordagem de Leon Hirszman é o uso expressivo do espaço na última sequência de Tião com seus pais, já que a discussão com Otávio é vista a partir da superioridade moral do homem mais velho que está em um ponto mais alto do quintal e a despedida de Romana é vista na mesma perspectiva do filho porque ambos estão no mesmo patamar do terreno.

O pessoal também pode ser político. É o que “Eles não usam black tie” desenvolve ao acompanhar a jornada de desestruturação familiar e política de Tião, Otávio, Romana e Maria por culpa da repressão governamental ao movimento sindical no fim da ditadura civil-militar brasileira. Esta proposta dramática e estética pode ser concluída através de três sequências em que nenhum diálogo formal é feito: o contraste entre o plano mais fechado em um Tião solitário e um plano geral de pessoas comovidas em um velório, o silencioso e doloroso processo de catar feijão feito por Romana e Otávio, e o cortejo fúnebre feito pelos companheiros da vítima da violência policial pelas ruas da cidade. O desfecho tem uma potência dramática que torna o filme um clássico do cinema brasileiro capaz de afetar os espectadores em uma dimensão pessoal e política.