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“ENCANTO” – Magia em família

A Disney e a Pixar construíram selos de qualidade no mundo das animações ao produzirem títulos que integram o fantástico às emoções de dramas reais. Os últimos lançamentos seguiram essa característica, embora “Soul“, “Luca” e “Raya e o último dragão” apresentem particularidades expressivas em termos de tramas e construção visual. Em ENCANTO, o princípio norteador é o mesmo, mas a questão é a criação de um equilíbrio entre a fantasia e a realidade. Nem sempre o filme consegue conciliar o sentido da magia com os debates sobre família e individualidade.

(© Walt Disney Pictures / Divulgação)

Na Colômbia, a família Madrigal é mágica, sendo que cada um dos membros possui algum poder especial utilizado para ajudar a comunidade do entorno. A fonte que proporciona tais habilidades é uma vela encontrada pela Abuela Alma no passado, quando ela e seus familiares fugiam de uma ameaça. Apenas Mirabel não desenvolveu qualquer dom aos 5 anos e, por isso, se esforça ainda mais para contribuir para o local.. Porém, a jovem nunca consegue agradar a avó, principalmente a partir do momento em que rachaduras começam a tomar conta de sua casa e a magia se enfraquece. Então, Mirabel entra em uma aventura para descobrir o que acontece com sua residência e família.

O conflito principal que perpassa a narrativa tem relação com as contradições de uma família que pode ofuscar a individualidade de seus integrantes. Os paralelos entre grupo e indivíduo começam inclusive nos aspectos extrafílmicos ao se considerar a tendência atual de Disney e Pixar produzirem obras com personagens ou elementos culturais latinos (algo já visto, por exemplo, em “Viva – A vida é uma festa“). No projeto mais recente, o cenário saiu do México e foi para a Colômbia, algumas referências são feitas sobre o processo de colonização espanhola, atores latinos fazem parte da dublagem, como John Leguizamo (colombiano), Stephanie Beatriz (argentina) e María Cecilia Botero (colombiana), a musicalidade das apresentações representa ritmos da América Latina e o realismo mágico de autores como Gabriel García Marquez encontra ressonância no filme. Desse modo, indivíduos específicos ou elementos sócio-históricos mais amplos traduzem a importância da representatividade na arte.

Sob um ângulo complementar, a magia presente na casa também ajuda na relação entre indivíduo e coletivo. De forma mais evidente, a construção se torna um personagem especial que aparenta ter sua própria personalidade e agir de acordo com suas vontades específicas. A partir dos efeitos digitais utilizados, os diretores Byron Howard e Jared Bush fazem o assoalho, os tijolos, os azulejos e os objetos comuns do local se movimentarem para tocar em alguma pessoa ou manusearem algum material – assim, a moradia dá suporte aos dons fantásticos dos Madrigal através de suas ações e da chama acesa de uma vela, além de expressar reações cômicas durante as interações com a protagonista (como a abertura de uma janela remete a um sorriso). Em uma escala mais metafórica, a residência reúne identidades diversas, evidenciadas nas portas mágicas destinadas aos quartos de cada pessoa detentora de poderes especiais, e simboliza a complexidade das dinâmicas familiares, sobretudo as rachaduras pelo chão e pelas paredes como sinais de brigas entre os parentes ou de crises na concepção do lar como refúgio e segurança.

Por outro lado, o desenvolvimento que o roteiro dá para a magia abre brechas para abordagens problemáticas. Implicitamente, a narrativa valoriza a excepcionalidade como algo que precisa ser buscado pelos Madrigal para encontrar seu lugar no mundo, enquanto Mirabel teria um vazio muito grande para tentar preencher. É bem verdade que o plot principal acaba incluindo a discussão sobre os diferentes papéis que os indivíduos podem ter a despeito de terem ou não habilidades incríveis, mas boa parte do conflito dramático contempla a ideia de que o trivial seria sem graça. Esta sensação transparece a cada momento que a família aparece representada como salvadora da comunidade ao redor, que depende dos poderes mágicos, e que os personagens demonstram seus dons – as jovens que possuem superforça e controlam as plantas, a senhora que faz comidas com propriedades curativas, o rapaz que assume formas corporais distintas, a senhora que extravasa suas emoções a partir de condições climáticas e o menino que se comunica com os animais.

Embora sejam feitas distinções entre o mágico e o comum, a obra cai em contradições que não são tematizadas pelos diretores. Os personagens coadjuvantes são descritos como incríveis e cada um deles tem sua própria apresentação para que o espectador reconhece suas habilidades, porém ficam de lado na progressão da trama sem participar diretamente da aventura pela preservação da casa. Mirabel surge como alguém que precisaria desenvolver algum dom para não estar na mediocridade, mas protagoniza os melhores números musicais apesar da falta de poderes, graças à força das canções “Família Madrigal” e “Só um milagre pode me ajudar” e da construção estética estabelecida pelas cores e pelas relações com o cenário (outra apresentação musical contagiante é aquela feita com Isabela sob a canção “Isabela la perfecta“). Através da trilha sonora assinada por Germaine Franco, fica evidente que a protagonista embarca sozinha em uma aventura para encontrar um parente desaparecido que pode ter respostas sobre os perigos que o milagre dos Madrigal corre.

A jornada que Mirabel passa faz com que ela tenha contato com visões proféticas sobre si mesma e o papel que pode desempenhar dentro da casa. Nesse novo núcleo, há outro problema implícito que a animação expõe sem conseguir trabalhar diretamente: as possibilidades de uma família ofuscar as individualidades se todas as atitudes e sentimentos forem em direção aos interesses coletivos sem ter cuidado com as necessidades individuais. A narrativa apenas toca tangencialmente nessa questão quando mostra a Abuela insistindo que tudo precisa ser feito pensando na família e na comunidade até desrespeitar a própria neta e alguns personagens tendo suas trajetórias específicas minimizadas pelo fato de abrir mão de suas características em prol da família. É assim que tio Bruno é rapidamente visto como aquele que sempre traz visões ruins do futuro, Isabela deve aceitar um casamento contra sua vontade e Luisa é considerada apenas em função de sua superforça.

Chegando ao fim da aventura, “Encanto” tem algumas pontas soltas do conflito dramático para tentar amarrar. O clímax precisa lidar com as contradições até então deixadas de lado acerca da necessidade de querer ser incrível para não cair na mediocridade e do peso do coletivo sobre as individualidades com o risco de tornar todos indistinguíveis. Então, a dinâmica familiar no terceiro ato precisa contar com a união para reerguer os Madrigal após uma reviravolta negativa e também concluir os conflitos abertos até então e deixados em suspenso sem tanta abordagem pelos diretores. Como resultado, a narrativa perde coesão ao ter que combinar muitas ideias em pouco tempo, notadamente as percepções de que as famílias podem acolher apesar de não serem perfeitas, a magia não soluciona qualquer problema e as identidades individuais não podem ser menosprezadas como se fossem todas partes de uma massa indistinta. Neste universo mágico, o todo pode ser interessante graças à representatividade e à concepção estética, mas as partes mais específicas de temas e personagens não estão no mesmo estágio.