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“ENQUANTO HOUVER AMOR” – Enxergar para parar de sofrer

Uma notícia ruim, evidentemente, representa sofrimento. Entretanto, esse sofrimento pode ser maior ou menor a depender de como essa notícia é recebida. É certo que, em ENQUANTO HOUVER AMOR, a notícia recebida pela protagonista a deixa completamente frágil. Contudo, talvez a fragilidade seja elevada por ela mesma, já que o fim do sofrimento, que pode ser alcançado (ainda que com dificuldades), está em suas mãos.

Após quase trinta anos de casamento, Edward decide se separar de Grace. A visita do filho do casal, Jamie, pode ajudar a acalmar os ânimos, porém Grace não está pronta para uma mudança como a anunciada. Sem opção, mas com o apoio de Jamie, ela terá de dar novo rumo à própria vida.

Pode surpreender que, após escrever títulos vigorosos como “Gladiador” e “Elizabeth: a Era de Ouro”, William Nicholson tenha elaborado um script minimalista como é o de “Hope Gap” – título original, que é indicado como um local na Inglaterra, mas também pode ser interpretado metaforicamente, já que, em tradução livre, pode significar “lacuna da esperança (ou seja, um título muito melhor que o nacional). Marca de seus roteiros, o uso excessivo de voice over, com subjetividades distintas, talvez prejudique um pouco o resultado final, porém seus diálogos são primorosos. Por exemplo, aquele em que mãe e filho conversam (em lindas falésias), quando ele fala sobre a hipótese de ela falecer, é nada menos que belíssimo.

(© California Filmes/ Divulgação)

Certamente o elenco de peso colabora para dar a potência necessária ao texto. Bill Nighy aparece pouco, porém transmite com eficiência a personalidade pacata de Edward. Josh O’Connor tem maior relevância, ainda que Jamie seja periférico à trama principal. O rapaz comparece pouco à casa dos pais, primeiro em razão da distância, segundo porque lá não se sente plenamente confortável (a mãe insiste em saber sobre sua vida amorosa, seu laptop fica ao lado de um ursinho de pelúcia). Sagaz, usa a posição da mãe (sentada na escada) para mostrar para ela o que ela precisa fazer para melhorar de ânimo (atravessar a porta, vista da escada, para sair de casa). Jamie tem uma visão de mundo completamente distinta daquela da mãe, muito mais sombria (“lugar assustador onde injustiças acontecem”), o que é um dos poucos aspectos claros de sua personalidade. No que concerne à sua interação afetiva, o filme é sucinto em demasia (ainda que isso não fosse central, a vagueza é incômoda).

Nighy e O’Connor estão bem, mas são engolidos por uma inebriante Annette Bening, que faz de Grace uma personagem, antes de tudo, enervada. Na primeira cena em que Grace briga com Edward isso fica claro, na qual ela, de maneira dura, o deixa acuado e chega a extremos impressionantes para simplesmente obter alguma reação (todavia, em vão). Essa é apenas a primeira cena explosiva, o que ela repete quando ele lhe dá a notícia da decisão de separação, quando a personagem parece reunir em poucos instantes os quatro primeiros passos das fases do luto (negação, irritação, negociação e depressão), em um atropelo que mistura melancolia, dor, ceticismo, incredulidade e ira. Bening demonstra que não é preciso gritar (embora, em alguma medida, o faça), para demonstrar sentimentos extremos. Como efeito colateral de seus sentimentos, Jamie sofre microagressões tal qual uma versão alternativa de Edward – não por outra razão, a figurinista Suzanne Cave, inteligentemente, veste o rapaz de vermelho (cor mais usada pela mãe) quando na presença exclusiva do pai e de azul (cor mais usada pelo pai) quando na presença exclusiva da mãe.

Grace vê Edward em todos os lugares, mesmo onde ele não está: em sua residência, na conduta de Jamie (o simples preparo de um chá), no cachorro etc. Ela se vitimiza, mas a sabedoria de Nicholson, que também dirige o longa, é não criar personagens unidimensionais: Grace encarna a fúria, mas sente-se abandonada após quase três décadas, condição que jamais imaginaria estar, por outro lado, ela claramente asfixia o então ex-marido; a ex-esposa exagera na reação, mas Edward já se preparava para a separação há um ano e vivia uma vida paralela, o que deveria ter evitado (já que isso aumentou a cólera de Grace). De todo modo, pouco poderia ser feito pelo casal: nos minutos iniciais já fica claro o quão distantes os dois estão, seja pelos diálogos (ela o ironiza por não perguntar, como retribuição, como foi seu dia), seja pela mise en scène (ele aparece em diferentes cenários, como a sala de aula e a rua, ao passo que ela muda do sofá para a mesa da sala).

Com os pés no chão, “Enquanto houver amor” mostra que, na esfera afetiva, existem decisões unilaterais das quais se pode discordar, mas é necessário aceitar, sob pena de aumentar ainda mais um sofrimento. Surpreendendo o espectador, o diretor usa câmera subjetiva ao final (pela primeira vez até então) com fins narrativos, sem dúvida, mas também com função simbólica de indicar que outro ponto de vista pode permitir enxergar algo até então não visto, algo que, possivelmente, permitirá o fim do sofrimento.