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“ENTREVISTA COM O VAMPIRO” (1994) – A mortalidade dos que vivem

A imortalidade costuma ser encarada na ficção como um dom e uma maldição, a depender do ponto de vista. Um dos seus maiores malefícios é que dificulta a formação de vínculos afetivos, tanto com pessoas quanto com coisas. De outro vértice, a mortalidade também costuma ser bastante dolorosa, com a perda de entes queridos que se tornam insubstituíveis. ENTREVISTA COM O VAMPIRO é uma reflexão criativa e elegante sobre essa insubstituibilidade.

O vampiro a que o título se refere é Louis, protagonista da obra. Na São Francisco de 1990, ele conhece um jornalista para quem aceita dar uma entrevista contando suas vivências nos últimos duzentos anos. Inicialmente, o entrevistador se revela incrédulo, mas logo percebe que o entrevistado está dividindo experiências inestimáveis.

(© WARNER BROS.)

Embora o roteiro estruturalmente se inicie com a entrevista, o plot tem como ponto de partida a razão e a forma de Louis se transformar em vampiro. Essa subdivisão que a roteirista (e autora da obra literária que originou o longa) Anne Rice é inteligente porque enaltece o caráter reflexivo do discurso do protagonista, que fecha a conversa com o jornalista deixando bastante clara a lição que ele quer transmitir. Quando as duas narrativas (a do pretérito e a do presente diegéticos) se encontram, o desfecho tem uma pitada de ironia que harmoniza com o perfil da trama.

É uma história extremamente melancólica, dramática desde o seu início, quando Louis conta que perdeu a esposa e o filho. Por razões desconhecidas, Lestat, que o transforma em vampiro, também tem um vácuo emocional que precisa ser preenchidos. Sugerindo uma narrativa homoerótica (o início em São Francisco não é à toa), eles constituem uma nova família com Claudia. O afeto entre os dois fica na sugestão, mas é evidente a formação de uma entidade familiar quando ela os encara como pais – e eles exercem essa função, um (Lestat) como o disciplinador (na ótica de Louis, ele tem nela uma pupila), o outro como a fonte de carinho que ela precisa. Com a evolução da trama, Claudia percebe que Louis precisa de uma parceira, oferecendo-lhe uma disposta a ser sua mãe justamente por ter perdido uma filha. A mortalidade trouxe a todos eles feridas imensas que talvez a imortalidade permita curar – ao menos eles tentam.

Rice deixa uma lacuna grande relativa ao entrevistador (Christian Slater), pois quase nada se sabe sobre ele (nem ao menos como chegou a Louis e por que o escolheu). Entretanto, o trabalho de construção do trio principal (Louis, Lestat e Claudia) é brilhante. Tom Cruise tem em Lestat um vampiro sedutor e pragmático. As cenas eróticas com mulheres (e um homem, o jovem envolvido com a viúva) lhe dão uma personalidade libertina, porém elas servem mais para mostrar que, para ele, todos são objetos, enquanto Louis seria seu parceiro “de vida”. Seu obstáculo é que o Louis de Brad Pitt não se conforma com a nova condição, resistindo a matar seres humanos para se alimentar. A misericórdia de um é enxergada como fraqueza pelo outro, como duas faces de uma só moeda. Por exemplo, quando o protagonista fica tentado a beber o sangue de alguém, como Yvette (Thandie Newton) ou Claudia (Kirsten Dunst), Pitt transmite no olhar a sensação do duelo entre id e superego sentida pela personagem, ao passo que Lestat, sarcástico, comemora cantando e dançando com uma pessoa morta quando vê o companheiro ceder à tentação.

Nessa perspectiva, “Entrevista com o vampiro” é também um filme sobre desejo. Quando criança, Claudia quer a companhia de um pai e/ou uma mãe; quando ela se transforma em mulher (em corpo ainda infantil), a castração está em ter algo que nunca poderá, que é justamente essa evolução pessoal. Enquanto a mortalidade permite o envelhecimento, os vampiros dessa sagaz mitologia (muito distinta da infantil versão da saga “Crepúsculo”) perdem a mutabilidade. A mulher que habita o corpo de criança quer ser mulher, inclusive para Louis, que sente por ela um amor deveras complexo, mesclando o sexual com o protetivo (e isso não é uma interpretação deturpada, já que eles se beijam mesmo se considerando explicitamente pai e filha).

Dunst tem o trabalho mais difícil da película, já que os outros já são adultos que consolidaram seu jeito de pensar e agir. Antonio Banderas surge como um novo parceiro para Louis, aparentemente disposto a responder o que Lestat se negava a falar. Do elenco, todavia, Banderas é o pior, dando a Armand um tom de fala exageradamente pausado e nada convincente. Nem o esplendoroso trabalho de maquiagem e penteado (olhos em cores mais claras e pele extremamente branca, além de cabelos longos) compensa a fragilidade da atuação de Banderas, mesmo considerando que Armand não é a personagem mais consistente da película.

Neil Jordan faz da produção um espetáculo visual e sonoro, com atenção especial para a trilha musical, assinada por Elliot Goldenthal, e para o design de produção, de responsabilidade de Dante Ferretti. As canções, quase sempre instrumentais (salvo no formidável epílogo), acompanham principalmente o espírito da película, que repousa entre o romance pesadamente gótico e o terror episodicamente gore (com três jump scares). Nessa atmosfera gótica, a fotografia de Philippe Rousselot não permite que os planos noturnos tirem a nitidez das imagens.

O visual do filme é quase uma personagem à parte, já que funciona, de um lado, para fins de imersão, e, de outro, para tornar as elipses orgânicas. A narração voice over, às vezes, auxilia na precisão dos períodos históricos, porém é a estética (sobretudo figurinos e cenários, de maneira mais indireta, para além da cena com os quadros de Cláudia, bem mais direta) que expande a percepção do público a esse respeito, com extraordinário grau de fidedignidade.

O foco de “Entrevista com o vampiro” não é seu erotismo (a despeito das cenas com nudez e da dança entre vampiros que sugere mais que uma simples dança), tampouco as formações familiares do subtexto. A ideia da obra é demonstrar que as reclamações sobre tudo o que diz respeito à finitude são inerentes à condição humana e, por conseguinte, inafastáveis. Ainda que os seres humanos fossem imortais, todas as perdas geram danos e, no mínimo, cicatrizes. Mais: mesmo que essas perdas fossem compensadas com novos vínculos, a irreparabilidade dos danos sofridos é inafastável. A cada um cabe seguir vivendo.