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“ERA UMA VEZ UM SONHO” – O romantismo hipócrita do american dream

O sonho americano é um ideal utópico. Trata-se de uma meta inalcançável em que preponderam valores pautados na liberdade e na prosperidade e catapultados por um sistema meritocrático. A liberdade se refere às escolhas corretas que o indivíduo faz durante a sua vida, orientado por sua família. A prosperidade é decorrência do esforço individual, pois a sociedade meritocrática permite a colheita dos frutos de maneira justa. A abstração é enxergada nos EUA com olhos românticos, porém, em termos práticos, soa como um delírio. Existe uma narrativa edificante dentro de ERA UMA VEZ UM SONHO, contudo ela está muito mal desenvolvida, escondendo a beleza romântica do american dream e expondo sua hipocrisia.

O ano é 1997; o local, as colinas de Jackson, no Kentucky. J.D. e sua família está prestes a se mudar para Ohio, na esperança de uma vida melhor para todos – o american dream. Catorze anos depois, J.D. ainda não alcançou seus objetivos, lutando para pagar sua faculdade de Direito, o que se torna ainda mais difícil quando problemas do passado retornam.

O design de produção de Molly Hughes é capaz de ilustrar bem o abismo emocional que existe entre as duas linhas temporais. Quanto mais distante o passado, mais fácil de revelar as discrepâncias em relação ao presente, o que significa que as cenas de 1997 causam maior curiosidade visual. Ainda assim, “Era uma vez um sonho” é modesto em sua estética. O protagonista usa um figurino neutro; sua mãe costuma usar vestuário com a cor vermelha, indicando sua personalidade vulcânica; sua avó está sempre com uma camiseta comprida e folgada (além de um cigarro nas mãos ou na boca), o que denota seu jeito desinteressado em relação à aparência. No som, quem assina a trilha é David Fleming, juntamente com Hans Zimmer, em um trabalho aprazível, mas sem muita personalidade, recordando algumas trilhas assinadas por Howard Shore.

(© Netflix / Divulgação)

Analisando microscopicamente, a direção de Ron Howard é boa, mesmo não sendo este o seu filme mais memorável. Em perspectiva macro, contudo, o roteiro de Vanessa Taylor (que se baseou no livro autobiográfico de J.D. Vance) é bastante problemático, o que acaba prejudicando a direção. Logo nos minutos iniciais, percebem-se algumas inconsistências no texto: em narração voice over, J.D. diz que as férias em Jackson constituíam a melhor época da sua vida, mas não explica o porquê; além disso, o protagonista declara que costuma afirmar que vem de Ohio, o que não é completamente verdade.

A narrativa é composta por três personagens principais. O protagonista é J.D., interpretado por Owen Asztalos na infância e por Gabriel Basso na versão madura. É verdade que os dois atuam com duas atrizes magníficas, mas apenas Basso fica ofuscado por elas. Trata-se de Glenn Close e Amy Adams, respectivamente a avó e a mãe (Bev) de J.D.. Por baixo de pesada maquiagem (o queixo, por exemplo, deixa de ser “pontudo” e fica mais redondo) e penteado expressivo  (excelentes!), Close constrói a avó do herói com ambiguidade certeira, pois sua personalidade se modifica a partir de um relevante plot twist da versão infantil de J.D.. Todavia, a modificação não reduz a qualidade da atuação de Close, ao contrário, enaltece sua compreensão sobre as variadas manifestações do afeto maternal. Mais um trabalho soberbo na gloriosa carreira da atriz. Adams também mostra uma atuação sólida (com maquiagem e penteado também bons, em menor grau), porém é prejudicada pelo grande equívoco do script.

Em poucas palavras, o roteiro não sabe lidar com saltos temporais. Utilizar duas linhas não é problemático per si, mas é necessário costurá-las para que o tecido final não seja confuso. O dilema de J.D. que permeia a trama (voltar para casa ou prosseguir na busca pelo estágio de verão?) é intrigante e a relação agridoce dele com a mãe tem inegável potencial. O problema é que a narrativa é desenvolvida de maneira randômica, sem uma espinha dorsal que dê coerência ao prosseguimento das cenas. Por vezes, o que se vê é um flashback imparcial, em outros momentos, o pretérito diegético é oriundo de subjetividade mental de personagem coadjuvante – e, o que é mais grave: sem seguir uma ordem cronológica. Há eventos de um passado menos distante que aparecem anteriormente ao passado mais distante (como a cena dos patins), o que torna a narrativa estruturalmente caótica.

O filme é uma colagem de cenas marcantes, quando não são chocantes. Para gerar emoção no espectador, o storytelling dá lugar a memórias esparsas, intercalando o pretérito diegético, consistentes em cenas emblemáticas. Violência e uso de drogas causam uma reação no público sempre, no caso do filme, não é porque o filme é bom, mas porque o assunto já tem potencial para isso. Personagens ficam de lado – em especial Lindsay (Haley Bennett), Usha (Freida Pinto) e o avô (Bo Hopkins) e subtextos não saem do óbvio (como a influência do contexto na criação de uma criança). No saldo, o american dream é dissolvido a um discurso que valoriza a fé, a família e as tradições até a segunda página. Os valores são preservados enquanto legado, pois o futuro é a prioridade absoluta. A ideia governante não é ruim, apenas pouco coerente. Porém, para um filme estruturalmente frágil, este é o menor dos problemas.