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“EU ME IMPORTO” – O escancarado da leoa

A protagonista de EU ME IMPORTO é o arquétipo da pessoa que quer tirar vantagem da forma mais fácil possível, encontrando em pessoas vulneráveis uma fonte de renda tranquila. Ela enxerga a sociedade como uma savana, na qual ela seria uma leoa. O retrato animalesco é fiel o suficiente para mostrar que sempre haverá disputa pelo papel predatório.

Marla Grayson trabalha como curadora, assumindo a responsabilidade de cuidar de pessoas que carecem de atenção, na ausência de um familiar que possa cumprir esse papel. Sua especialidade é com pessoas idosas e ricas, pois com esse perfil ela pode tirar proveito com maior facilidade. Jennifer Peterson, sua nova curatelada, parece ser a vítima perfeita, porém Marla não imagina que a senhora solitária tem amigos poderosos e perigosos.

(© Netflix / Divulgação)

O que é mais interessante em “Eu me importo” é a subversão de algumas ideias questionáveis. Ainda que Marla se encaixe no arquétipo mencionado, ela se apropria do discurso feminista a despeito da sua faceta vilanesca. Quando o filho de uma idosa curatelada por ela a ataca, sua arma é a condição feminina – o que surpreende é que o discurso feminista quer reverter a posição inferior em que a mulher é socialmente colocada, de modo que sua utilização como argumento contra uma indignação legítima é de uma perversidade sem censura. Ela não está sendo atacada por ser mulher e sabe disso, mas abraça o argumento para se tornar mais maligna do que já é.

O roteiro de J Blakeson (que também dirige o longa) tem certa ousadia ao quebrar convenções como a racionalidade extrema e utilitarista (que geralmente é atribuída a homens) e a própria posição ofensiva (o casal de lésbicas geralmente é a parte ofendida, não ofensora). No primeiro caso, a escolha de Rosamund Pike para o papel não foi muito boa, não por sua falta de talento, mas porque Marla é parecidíssima com a Amy de “Garota exemplar”, gerando uma sensação de déjà vu. Outra ideia subvertida é o papel das instituições: Marla as utiliza de acordo com suas conveniências pessoais (e profissionais, já que há uma mescla das áreas), utilizando um nefasto quid pro quo legalmente no seio do Estado.

Eu me importo” não tem pessoas boas, todas são, no mínimo, espertas, cada uma à sua maneira. Jennifer tem enorme potencial, que, contudo, é desperdiçado ao aparecer a misteriosa personagem vivida por Peter Dinklage – na qual se verifica mais um arquétipo, o do mafioso. Dinklage aparece caricato sem apelar para o humor (salvo, talvez, a peruca horrível), repetindo clichês e ofuscando Dianne Wiest, que tem em Jennifer segredos bem mais promissores (o que não significa que as promessas se cumpram). Wiest imprime na personagem voz fraca e aparência amigável, modificando a exteriorização a partir da saúde de Jennifer. É a melhor do elenco.

Não que Rosamund Pike não esteja bem, ela é fundamental para o funcionamento da trama. Na audiência com o sr. Feldstrom (Macon Blair), ela fica de pé enquanto ele permanece sentado, afinal é ela a leoa da savana (ele seria, talvez, um gnu). Para exibir superioridade, seu cigarro eletrônico é ferramenta de distanciamento, como na cena em que conversa com Dean (Chris Messina). O diretor exagera em algumas cenas para dar a elas um tom épico, por exemplo ao usar slow motion na clínica. O excesso também se verifica no design de produção, que pinta incontáveis elementos da cor azul, enfatizando a frieza das personagens. As paredes do cofre são azuis, assim como as da sala do mafioso, mas também vestidos e ternos de Marla e a casa de Jennifer. É tudo tão explícito que Blakeson parece querer martelar na cabeça do espectador que todos são inescrupulosos.

Mais interessantes são as ocasiões em que o filme opta por sutilezas. Por exemplo, quando Marla e Dean se enfrentam no tribunal, ele usa um terno off-white, ao passo que ela se veste de branco, pois sua frieza é insuperável. Além de excessos geralmente de didática, ainda que não verbal, “Eu me importo” tem inverossimilhanças claras, como o cilindro que acerta uma personagem, o uso de arma de fogo em um contexto no qual isso seria inadmissível e, principalmente, a cena no lago.

O eletrônico da trilha musical dá à produção personalidade. Seu enredo é instigante o suficiente para garantir que não caia rapidamente no esquecimento e a ideia de fundo, na qual as pessoas são divididas em duas categorias antagônicas, mesmo maniqueísta, é crível e embasa adequadamente o plot. Entretanto, o filme seria melhor caso se importasse menos com o escancarado da leoa e mais com o subliminar da savana.