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FAMILY ROMANCE, LTDA. – Pessoas e coisas, valor e preço [43 MICSP]

Na filosofia kantiana, o que difere pessoas de coisas é que, enquanto estas têm um preço, aquelas têm um valor (a dignidade). FAMILY ROMANCE, LTDA. mostra uma realidade em que pessoas também têm um preço. A despeito de muitos defeitos, o filme propõe eficazmente a seguinte reflexão: até que ponto a felicidade pode ser comprada?

O presidente da Family Romance, Ltda, uma empresa que aluga pessoas substitutas para clientes que precisam de ajuda no dia a dia — seja em algum evento social ou durante uma reunião do trabalho —, é contratado para atuar no lugar do pai de uma menina de 12 anos, que está desaparecido.

Cartaz de “Family romance, LTDA

Na trama, a empresa Family Romance LTDA. oferece serviços de atuação para seus clientes, isto é, seus funcionários interpretam papéis de pessoas conforme a vontade do contratante. Seu presidente é contratado para substituir o pai desaparecido de uma garota de doze anos, vivendo essa experiência de substituir uma pessoa para fazer outra feliz.

Escrito e dirigido por Werner Herzog, desde a sua premissa, a obra é, no mínimo, esdrúxula. E ela se torna mais excêntrica conforme avança, tanto no texto quanto na direção. A originalidade seria um ponto positivo, não fosse o viés caricatural que dá desnecessários tons de comédia ao longa.

Do ponto de vista estrutural, o roteiro tem falhas consideráveis. Existe uma trama, referente ao presidente da empresa e sua experiência com a Mahiro, sua filha falsa contratada pela mãe da garota. Não há subtramas, de modo que as demais personagens (que não são poucas) são reduzidas basicamente a cenas esparsas, exemplificando as atividades da empresa. Na prática, surgem mais cenas esquisitas, como o homem que quer alguém que leve uma bronca no trabalho no seu lugar, a mulher que quer repetir um evento que a deixou alegre e a mulher que quer ser tratada como celebridade. Tudo isso exemplifica os serviços prestados pela Family Romance LTDA., porém são cenas que não compõem a narrativa.

Nem mesmo a trama é sólida o suficiente: não há uma verdadeira evolução narrativa, ou, se ela existe, fica ocultada em meio a cenas exemplificativas. Ishii passa mais tempo com Mahiro, eles vão a parques, mas o conhecimento que ele acaba tendo sobre a pessoa dela é reduzido – o que não os impede, todavia, de formar um laço afetivo, dada a precariedade de suas vidas (ele dedicado exclusivamente ao trabalho, ela no vácuo da ausência da figura paterna). Não é feito nenhum aprofundamento nas personagens, o que faz com que a cena final destoe de todo o resto, deixando um vazio muito grande para o público fazer a sutura. Não se sabe verdadeiramente quem são Ishii e Mahiro, apenas por que estão dividindo momentos juntos.

Com tamanha repetição, quando não é engraçado por ser bizarro, o filme se torna tedioso (por exemplo, a cena com peixes é flagrantemente descartável). São inúmeras idas de Ishii e Mahiro a parques e conversas sobre futilidades, revelando-se, no máximo, uma pré-adolescente prestes a enfrentar os desafios da adolescência e uma mãe preocupadíssima com a vida da filha. Enquanto aquela revela vulnerabilidade (desdobramento lógico da ausência do pai), esta expressa um verdadeiro desespero – para não falar no despreparo para cuidar da própria filha.

Para sugerir naturalismo, a imagem é de qualidade reduzida, o som não é dos melhores e a filmagem prevalente é de câmera na mão. Aproximando-se da linguagem do found footage, são usadas técnicas de documentário, com planos fechados nos rostos (nesse caso, todavia, há um excesso incompatível) e uso intenso de zoom in (ao invés de corte para novos planos com enquadramento menor). Por outro lado, algumas cenas são inverossímeis em si mesma, quando não no aspecto formal – como o uso de plano-contraplano, algo muito mais coerente com a ficção. Em síntese, é utilizada a linguagem documental, porém não de maneira pura, sendo difícil afirmar se o filme é realmente um documentário. Se for, é mal filmado e mal roteirizado.

Não obstante, o plot é deveras particular. As pessoas seriam substituíveis? É possível comprar uma realidade falsa para ter momentos bons? Em caso afirmativo, é possível se enganar com essa farsa? Uma empresa desse tipo seria uma tendência para o futuro, considerando a solidão generalizada? Se a resposta for sim, seria possível eliminar essa solidão com um afeto falso? O afeto pode ter preço? “Family romance, LTDA.” deveria abordar a matéria muito melhor, mas é suficiente para estimular a reflexão.

* Filme assistido durante a cobertura da 43ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.