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“FESTIM DIABÓLICO” – Pequeno grande filme

O “crime perfeito” é objeto de diversas manifestações artísticas – em especial, na literatura e, claro, no cinema. Especificamente em relação à sétima arte, FESTIM DIABÓLICO é um pequeno grande filme, supostamente inspirado em um caso real, que desafia o espectador a acompanhar uma empreitada macabra.

Tudo começa quando Brandon e Phillip matam seu colega David. Seu objetivo não era assassinar um desafeto, mas praticar um homicídio sem serem descobertos (a ideia do crime perfeito). Desafiando a percepção das pessoas mais próximas à vítima, eles organizam uma reunião em sua casa, colocando a comida que servem aos convidados em cima do baú onde colocaram o corpo de David.

(© Universal Pictures / Divulgação)

É provavelmente pela premissa mórbida do roteiro de Arthur Laurents (que se baseou na peça escrita por Patrick Hamilton) que “Rope” (“corda”, em inglês) se transformou em “Festim diabólico”. Uma escolha infeliz porque dá a impressão de que se trata de um filme de terror, enquanto que, na verdade, é uma das melhores obras do mestre do suspense, Alfred Hitchcock – cineasta que, por sinal, teve diversos títulos “adulterados” no Brasil, como “Vertigo”, que virou “Um corpo que cai” (um verdadeiro spoiler!), e (o pior) “Under capricorn”, que virou “Sob o signo de capricórnio” (na verdade, “capricorn” se refere ao trópico, não ao signo).

Rope” não é um filme de terror, mas um suspense como poucos. É com maestria rara que Hitchcock explora a mise en scène em praticamente um só cenário. A cena inicial, única que ocorre em local aberto, não tem grande simbolismo (salvo a quietude do ambiente exterior, enfatizada pela música e pela calmaria do que é mostrado), tampouco representatividade na obra (no máximo, a aparição do diretor). Com movimentos de câmera relativamente simples, Hitchcock prepara o espectador para entrar no local do crime.

Embora o zoom in indique o ingresso no apartamento visto de fora, a estética do lar da dupla de assassinos – mais especificamente, as cortinas – deixa isso claro. Trata-se de uma residência grande, com recintos espaçosos e isolado do ambiente externo. Quando as luzes do letreiro de fora ultrapassam as janelas, é um sinal: há vida lá fora. Quando Rupert abre a janela, o isolamento artificial do apartamento se esvai. Com diversos travellings e panorâmicas pela casa (em especial nas salas de estar e de jantar), Hitchcock aumenta a imersão do espectador e eleva a tensão em razão da sua incomparável habilidade. Destaca-se a cena em que a Sra. Wilson se prepara para colocar os livros no baú: enquanto os diálogos ocorrem fora do campo e com outras personagens, sua movimentação pelo apartamento, filmada em diagonal, cria inquietação na plateia (será que ela vai abrir o baú?).

Outro grande diferencial da obra é que Hitchcock simulou em seu filme um enorme plano-sequência. Na época, os rolos não permitiam filmagens muito longas, de modo que o diretor dividiu os oitenta minutos – trata-se de um filme de curta duração – em dez takes curtos (entre quatro e dez minutos) camuflando os cortes. Como não era possível gravar o filme todo por uma só tomada, o diretor aproximava a câmera em um elemento escuro do campo (na maioria das vezes, as costas de uma personagem) simulando tratar-se de uma movimentação natural da câmera – quando, na verdade, o que ele fazia era esconder o corte e trocar de rolo de filme. Trata-se de uma engenhosa ferramenta que, além de driblar uma limitação da época (1948), tornou-se estratégia para inúmeros outros cineastas. (Clique aqui para ver um vídeo em que aparecem alguns dos cortes ocultos)

Também para os parâmetros da época o filme é vanguardista em seu subtexto, como ao sugerir que Brandon e Phillip seriam um casal (como quando aquele puxa a mão deste para tirar sua luva, ou quando o primeiro sugere uma viagem de férias para ambos). Não se pode negar que o texto apresenta alguma ousadia, sobretudo por encarar um assunto que pode ser tabu para algumas pessoas ainda hoje (um assassinato praticado pelo prazer de não ser descoberto) e por ter uma personagem tão sombria quanto Brandon (John Dall).

Enquanto Phillip (Farley Granger) demonstra algum arrependimento e prefere permanecer na escuridão logo após o ato, parecendo incrédulo consigo mesmo, Brandon revela uma tranquilidade assustadora. Pior, ele fica alegre com o que fez, afirmando ter sentido “exultação” ao sentir o corpo da vítima amolecer em seus braços. Brandon trata a vida alheia como algo descartável, tentando embasar sua visão de mundo na filosofia de Nietzsche (ao mencionar o super-homem, ideia segundo a qual a humanidade seria elevada através de um modelo ideal de ser humano, um indivíduo superior aos demais) e no discurso de Rupert.

Interpretado por James Stewart (um dos maiores parceiros de Hitchcock), Rupert é o único que Brandon admite representar algum perigo à “perfeição” de seu crime. Ele pode andar mancando, mas a aparente fragilidade é meramente física, pois é o único a perceber a estranha conduta de Phillip e Brandon – o primeiro, ao se exaltar com a simples afirmação de que estrangulou uma galinha (o que depois é melhor esclarecido); o segundo, ao gaguejar. Brandon pode ser manipulador (como em relação a Janet e Kenneth) e pode ter um humor bastante mórbido (bem diferente do engraçado fascínio que a Sra. Atwater nutre pela astrologia), porém ele reconhece a ameaça que Rupert representa.

Festim diabólico” é um clássico inestimável. Sua curta duração e seu nome pouco conhecido podem sugerir tratar-se de um filme menor, porém ele é enorme na história da sétima arte. E sobram motivos para que assim o seja.