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“FESTIVAL EUROVISION DA CANÇÃO: A SAGA DE SIGRIT E LARS” – Antes fosse só um musical

Uma performance musical em uma festa no segundo ato, uma reviravolta na semifinal da competição em Edimburgo e a conclusão das apresentações artísticas no terceiro ato. O que os três momentos citados têm em comum? A presença ou a influência de Will Ferrell é menor ou contida. Na maior parte da narrativa, entretanto, o ator e sua personagem diminuem o brilho maior que FESTIVAL EUROVISION DA CANÇÃO: A SAGA DE SIGRIT E LARS poderia ter. As diferenças se sobressaem tanto que a sensação mais forte é a de que dois filmes muito diferentes tentam se articular sem sucesso.

(© Netflix / Divulgação)

Fora da Europa, o festival pode não ser tão conhecido, mas no países europeus é um grande fenômeno que ocorre regularmente (exceto no contexto atual do coronavírus). Tomando como base esse evento real, a produção original Netflix conta a história ficcional de Sigrit e Lars, dois aspirantes a músicos que conseguem a chance de representar a Islândia na Eurovision Song Contest. A oportunidade de concretizarem seu sonho enfrenta obstáculos pelo caminho, pois a dupla é a melhor do país e seus conterrâneos não apoiam.

As adversidades encaradas pelos protagonistas são apresentadas nas sequências iniciais, capazes de contextualizar o vilarejo de Husavik de montanhas geladas, proximidade do mar e população pequena. Os dois cantores não são encorajados pela família nem pelos demais moradores a participarem da competição de música, já que Erick, o pai de Lars, considera o filho um fracassado por não ter formado sua própria família e os frequentadores do bar onde a dupla canta insistem que querem ouvir sempre a mesma canção tradicional. Tal apresentação já começa a indicar uma dependência em relação a um tipo de comédia pautada por estereótipos e simplificações, evidente principalmente na representação dos islandeses como personagens simplesmente rústicos, céticos em relação ao talento dos compatriotas e donos de um sotaque caricato. A caricatura também dita o tom da rejeição dos moradores pelo evento, pois o tratam como algo ridículo mesmo que a narrativa não ofereça elementos para essa caracterização.

Enquanto a trama não se passa efetivamente no festival, o protagonismo gira muito em torno de Lars, o que faz com que a persona de Will Ferrell se torne o centro das atenções. Assim, o ator recai na sua típica fórmula de humor baseada em overacting e piadas bobas de partes íntimas do corpo, além de encarnar novamente o tipo de homem de meia-idade infantilizado que se recusa a amadurecer (em projetos como “Escorregando para a glória” e “Mais estranho que ficção” esse estilo até funcionou, mas não se sustenta em um filme que possui uma dimensão musical que não combina com essa comédia). Por conta disso, a canastrice de Pierce Brosnan se acentua de não de um modo positivo e o talento cômico e dramático de Rachel McAdams fica subordinado à influência de Will Ferrell tanto quanto Sigrit se ofusca ao lado de Lars – o diretor Davi Dobkin não torna a dinâmica entre os atores principais uma questão integrada aos conflitos narrativos, uma vez que parece nem ter consciência dos efeitos dessas interações. Logo, desperdiça-se uma personagem interessante, que começa ingênua (por exemplo, fazendo pedidos a elfos que ela acredita existirem) e percorre um arco de compreensão de sua força artística.

Quando enfim o casal viaja para o evento, Lars e Will Ferrell ficam gradativamente um pouco de lado não por uma decisão consciente do cineasta, mas porque o segmento musical fala mais alto. À medida que os números musicais são encenados, é possível notar a diversidade de estilos e características dos artistas de vários países dentro de uma estética excêntrica e nada usual (os figurinos, os temas das canções, a iluminação, a mise-en-scène…). Ao invés de pesar a mão na excentricidade, a narrativa trabalha o elemento pouco convencional de maneira a criar cenas intensas – há uma preocupação da equipe de não ridicularizar a imagem do festival através de performances muito exageradas. Um exemplo significativo é o momento em que os concorrentes cantam juntos na festa de Alexander Lemtov, que serve tanto para imprimir energia e conexão entre as personagens quanto marginalizam Lars – o homem mal aparece nos diversos enquadramentos e pouco participa cantando ou dançando.

Com a entrada definitiva do musical, Sigrit e Rachel McAdams assumem o protagonismo da história e reduzem a interferência problemática do tipo de humor de Will Ferrell. Graças à presença de Alexander, representante da Rússia que não pode assumir sua homossexualidade, e de Nina, representante da Grécia que flerta com Lars, os protagonistas são colocados em uma série de conflitos que ameaçam a relação entre os dois e o resultado da competição. Além disso, Sigrit desenvolve um arco de transformação mais complexo do que Lars, como se vê na jornada que atravessa se questionando se deve apenas disputar a premiação ou investir no aprimoramento de suas habilidades artísticas. E não se trata de gerar dúvidas para a personagem a partir de intrigas novelescas, mas de expor os questionamentos da parte mais talentosa da dupla a respeito do que lhe dá satisfação ou não na arte – por ironia do destino, pode-se fazer um paralelo com os atores principais e o fato de Rachel McAdams ter mais recursos de interpretação.

Embora o filme encontre um desenvolvimento um pouco melhor a partir do segundo ato, não significa dizer que não existam momentos cômicos caricaturais e excesso de atuação de Will Ferrell que, se fossem dispensados, construiriam uma unidade mais coesa (casos das cenas em que há aparição de um fantasma e de turistas norte-americanos). Isso porque a conclusão da trama depende muito mais de Sigrit, da apresentação da canção “Husavik“, indicada à categoria no Oscar de 2021, e à abordagem da ideia de que é preciso mais valorizar a terra natal do que um prêmio específico. Dessa forma, quando “Festival Eurovision da Canção: A saga de Sigrit e Lars” intensifica o núcleo musical e prioriza Sigrit/Rachel McAdams tem algumas qualidades, porém quando abre espaço para a comédia e para Lars/Will Ferrell abusa de situações constrangedoras para o público.