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“GAMODI” – O descarte inevitável [47 MICSP]

Seria GAMODI um clipe musical, um documentário observativo ou mesmo um sonho transformado em filme? Talvez seja tudo isso ao mesmo tempo, com um pouco de cada um. É mais fácil, assim, afirmar o que o longa não é: ele não é convencional, óbvio ou facilmente decifrável. Isso não seria um problema se ele fosse cativante como um todo ao invés de criar planos poeticamente enigmáticos e inevitavelmente descartáveis.

Viktor é uma famosa drag queen da televisão local, enquanto Tarzan é um jovem em situação de rua. Os dois compartilham um lar em um prédio cuja construção foi interrompida e está agora abandonado. O filme então os acompanha em uma rotina que os relaciona entre si, com outras pessoas e com o edifício.

(© Kursha Films / Divulgação)

No desfecho de sua obra, o diretor Felix Kalmenson elabora um verdadeiro clipe musical, no qual, extraordinariamente (leia-se, em contradição a todo o resto do filme), desenvolve-se no surreal. A cena, todavia, não possui legenda (e não é a única música sem legenda), o que prejudica consideravelmente a compreensão. No geral, o som do filme é abafado e prevalecem ruídos intradiegéticos (a cafeteira, a caixa sendo arrastada, o vento, os passos, a notificação do aplicativo de relacionamento etc.), o que aproxima “Gamodi” do documental. Essa aproximação se revela também em outras características formais, tais como o trabalho de câmera (há planos filmados por trás de plantas), a narrativa que acompanha, à distância, a rotina da dupla principal, e a inexistência de diálogos. Existem falas, como as do prólogo e os áudios ouvidos por Viktor, que não constituem, todavia, diálogos.

Com raciocínio similar, o texto de Kalmenson não constrói personagens, mas figuras representativas. Tarzan representa a curiosidade da juventude, propondo-se a estudar os projetos de engenharia (colocando-se no lugar dos engenheiros com o capacete) e a se submeter a rituais de pessoas semelhantes a ele. Por sua vez, Viktor corporifica o isolamento, decorando à sua maneira o local onde habita sozinho, sendo relutante em ouvir notícias sobre a covid (chega a mudar de canal) e se recusando a responder os áudios do celular. Tarzan e Viktor compartilham, porém, uma dose de companheirismo: aquele, com o grupo em que se insere; este, em seu backstory dos áudios; ambos, por exemplo ao dividir um pacote de salgadinhos.

O que torna a narrativa enfadonha e desinteressante, porém, é a maneira fragmentada com que ela é desenvolvida, demandando uma paciência do espectador para algo que jamais ocorre – alguma tensão, algum sentimento. O cenário, por exemplo, tem potencial polissêmico imenso: um local ermo, abandonado, deixado literalmente aos pedaços enquanto um projeto do que poderia vir a ser, mas que não foi, situação idêntica à de Viktor e Tarzan. Eles são marginalizados, a razão concreta, contudo, é desconhecida. Concretude é algo que falta a “Gamodi”, longa repleto de simbolismos episodicamente belos e integralmente ocos. A cena do ritual com Tarzan é poética, mas sem muito sentido diante da ausência de explicação mínima. A cena dos fogos de artifício é de uma estética encantadora, mas a conclusão é exatamente a mesma. A câmera estática, dependendo da sequência de cortes para alguma progressão (embora o filme não seja necessariamente linear), denota que cada quadro é pensado para ser genial, mas é na realidade vazio de significado.

Gamodi” é um filme pretensioso que, ao invés de ser assistido, é tolerado. Seu próprio título, que está em uma das canções, é ininteligível, tornando-o flagrantemente inacessível, ao menos em parte (talvez a população da Geórgia seja capaz de compreendê-lo melhor). Se durante a sessão o espectador não é provocado a sentir algo diferente de estranhamento (além de tédio, talvez com pitadas de raiva), ao final, não é levado a reflexão alguma, descartando a obra por completo.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).