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“HERÓI DE SANGUE” – Indecisão existencial

O título nacional de HERÓI DE SANGUE não é plenamente fiel ao conteúdo do longa. O original é “Tirailleurs”, em tradução livre, “escaramuçadores”. Nos EUA, é “Father & Soldier”, “pai e soldado”. A ênfase do primeiro está nos horrores da guerra, embora possa o sangue se referir ao laço sanguíneo da dupla principal. No segundo, mais fiel à escolha da própria produção, o que é central é a batalha. O terceiro é mais poético, podendo se referir a uma só ou a duas personagens distintas. A pluralidade de interpretações, nesse caso, não é uma virtude.

Em 1917, Thierno é um dos jovens senegaleses recrutados involuntariamente para servir à França na Primeira Guerra. Diante da situação, seu pai, Bakary, se alista por vontade própria para poder estar próximo do rapaz. A relação entre eles e o modo como se enxergam muda profundamente a partir de então.

(© Festival Filmelier no Cinema / Divulgação)

A habilidade do diretor Mathieu Vadepied em comover o público com “Intocáveis” não foi repetida na mesma medida nos longas posteriores, mas em “Herói de sangue” ele parece quase tê-la perdido. O problema é existencial: que tipo de filme ele quis apresentar desta vez? Seria um filme de guerra, um drama histórico ou um drama familiar? Na prática, diante da indecisão, o caráter parcelar do longa reduz muito a sua qualidade.

Enquanto filme de guerra, a película apresenta tudo aquilo que já foi visto inúmeras vezes nos semelhantes: a angústia da espera no front pela possível morte iminente, a talvez vã esperança de imaginar um futuro pós-guerra, a não confiabilidade quanto aos demais, o nada convincente discurso motivacional sobre heroísmo, o amálgama de tiros, bombas e poeiras, e, claro, mortes. Vadepied não espetaculariza a violência da guerra, mas também não a oculta. Com a filmagem com câmera na mão e som subjetivo abafado, a mise en scène é convincente no quesito. Entretanto, falta-lhe emoção, o filme de guerra não é particularizado para além da relação entre pai e filho, que, apesar de existente, é subaproveitada.

O prólogo, que se passa no futuro diegético, tem como função única e exclusiva criar um drama histórico a partir do drama familiar do roteiro de Vadepied e Olivier Demangel. São dois os problemas aqui: a narração voice over é uma reflexão vazia, uma vez que não adequadamente contextualizada; e sua retomada ao final lhe dá sentido, mas adota uma ideia governante que não corresponde àquela trabalhada na narrativa. Dito de maneira mais simples, o drama histórico serve, evidentemente, como um fundo para a trama, mas enquanto tal existe autonomamente apenas nos minutos iniciais e finais, despindo-se de qualquer impacto que poderia ter. É possível estabelecer paralelos com o filme de guerra, por exemplo, na objetificação dos soldados africanos (Bakary é elogiado pela “coragem em defender a pátria”, mas não entende o que está sendo dito por não falar francês, o que não faz diferença em razão do caráter protocolar do momento). A articulação entre guerra, História e família, contudo, é mal elaborada.

Isso ocorre em parte graças à dificuldade do avanço narrativo. Pouco importa a previsibilidade do desfecho (sem olvidar do plano poético no Arco do Triunfo), o que seria relevante não é bem trabalhado, leia-se, o encadeamento da relação entre pai e filho. Em visão micro, as cenas funcionam. São ótimos o diálogo sobre a necessidade de Bakary precisar obedecer ao filho, o que especulam o que o resto da família está fazendo (cena interrompida por um corte para um plano em que o genitor observa carinhosamente o filho dormir com uma tranquilidade juvenil, incompatível com o momento e o local) e a do treino comandado por Thierno. Boa parte do mérito, todavia, vai para Omar Sy e Alassane Diong, aquele por representar um pai obstinado a proteger a vida da prole, este por interpretar um rapaz forçado à idade adulta que rapidamente ressignifica o laço paterno e sua condição naquele cenário. Sy e Diong têm atuações deslumbrantes e, junto do impecável design de produção, são o que a obra oferece de melhor.

Nesse sentido, os atores principais comovem e a construção visual é bastante imersiva (sobretudo na contraposição da fotografia árida de tons pastéis do Senegal face ao escuro da mistura de cinza, terra e musgo da guerra). “Herói de sangue” seria melhor se focasse na força da dupla, deixando a imagética falar por si só. Não faz sentido perder tempo com personagens descartáveis ou mesmo com uma subtrama de um tenente (Jonas Bloquet) ambicioso, invejoso e, principalmente, unidimensional. Há mais faíscas e tensão quando Thierno confronta Bakary do que quando eles batalham.

* Filme assistido na cobertura do Festival Filmelier no Cinema, de 2023.