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“JOHN WICK 4: BABA YAGA” – A liberdade guiando o povo

Em 1830, Eugène Delacroix pintou sua obra-prima, um dos quadros mais famosos da História: “A liberdade guiando o povo”. Sua ideia era retratar a Revolução de Julho, uma revolta dos parisienses contra o autoritarismo do rei Charles X, levante popular que levou a França a uma monarquia constitucional. Ainda que sua representatividade não seja plena, sua presença em JOHN WICK 4: BABA YAGA dá indicativos de um texto um pouco mais refinado comparativamente ao terceiro filme.

John Wick continua sua empreitada por uma vida independente da Alta Cúpula. Para ganhar sua liberdade, porém, o novo inimigo é o Marquês de Grammont, alguém cuja influência não conhece fronteiras e determinado a acabar com Wick.

(© Paris Filmes / Divulgação)

O Marquês é um dos piores papéis do geralmente bom ator Bill Skarsgård. Do ponto de vista da sua atuação, é perceptível que Skarsgård não encontra o tom, perdido entre a insanidade clichê dos vilões dos filmes de ação e o olhar blasé que não representa nada – sem desconsiderar sua completa inabilidade de simular um sotaque francês (mesmo mal, porém, ele ainda é melhor que Keanu Reeves, no mesmo papel pela quarta vez) . Na verdade, o Marquês não é propriamente uma personagem, mas uma engrenagem importante para mover a trama. Algo semelhante ocorre com Caine, um vilão secundário cujo backstory deve ser completamente presumido pelo público, pois nunca é minimamente trabalhado. A diferença com relação ao antagonista principal é que Caine é vivido por Donnie Yen, ator cuja reputação fala por si. É em parte surpreendente a ousadia do diretor Chad Stahelski ao conceber Caine como um assassino cego: não se espera que Yen participe como alguém com a deficiência visual, mas é de se esperar alguma originalidade do cineasta na ação.

Mais uma vez, Stahelski oferece ao público cenas de ação sem igual, com coreografias de luta sensacionais. Destacam-se: a criatividade da primeira luta de Caine, em que Yen encanta com habilidades inventivas para driblar a deficiência da personagem; o belíssimo spinning shot com o carro girando no centro de Paris; o plano-sequência simulado filmado na vertical em um edifício antigo vazio; e o contraste entre, de um lado, a adrenalina colossal da sequência na escadaria da Sacré Coeur, e, de outro, a lenta e crescente tensão do duelo que a ela se segue. No duelo fica clara a apropriação estilística do western, mas outro exemplo é a sequência em Osaka, praticamente um fragmento de filme de samurai. Veja-se que suas características estão presentes: ao invés de ambientação histórica, há um anacronismo como parte da construção de mundo (uso de ampulheta, vocabulário envolvendo termos abandonados como Ancião e brasão familiar etc.); há uso de cenários naturais (cerejeiras, jardim com velas, cascata etc.); e os figurinos são tão fidedignos (quimonos, inclusive como armaduras) quanto a trilha (em estilo japonês) – além, é claro, da forte presença das artes marciais. Até mesmo a abordagem de temas éticos se faz presente, especificamente no entendimento de Koji (Hiroyuki Sanada) de que há valores mais importantes que a própria integridade física.

A mise en scène do cineasta na ação é mais uma vez irretocável, somada a um visual que por vezes alcança o nível deslumbrante (a cena com o novo Ancião, com fotografia em tom pastel e cavalos e figurinos de cores contrapostas, é belíssima) e uma trilha musical coerente com as variações narrativas. Entretanto, a duração do longa se torna problemática em razão do que se costuma chamar de “barrigas”, cenas dispensáveis que somente inflam o filme, sem nada acrescentar a ele, o prejudicando. É o caso do prólogo e da conversa na igreja, dentre outras. Por outro lado, comparativamente a “John Wick 3: Parabellum”, o roteiro é superior. Do quarteto do anterior apenas Shay Hatten foi mantido, trabalhando no texto junto de Michael Finch. O quarto capítulo não é primoroso em seu script (por exemplo, continua com diálogos sofríveis e as personagens são ocas), contudo se esforça em impedir que o longa repita o pseudovideogame do antecessor.

Desse modo, assuntos como conformismo, submissão e determinismo são abordados en passant. Com uma paráfrase consubstanciada na expressão “assim é a vida”, Winston (Ian McShane) aceita que precisa se adequar às regras que a ele se aplicam. Com esta mentalidade, percebe que o Marquês está igualmente submetido a elas e que isso pode ser usado em seu favor. Todavia, o vilão, com seu poderio, as manipula em seu favor (como ao criar obstáculos para a chegada de John). Além disso, ainda que o Marquês afirme que John seja inafastavelmente um assassino, não é este o rótulo que ele deseja. Afinal, o que ele quer é ser livre, ainda que para isso precise lutar contra a opressão e conquistar a sua liberdade. Não é à toa que seu desfecho é atrelado ao de outras personagens que o rodeiam: John é o herói, mas a liberdade, se atingida, não será benefício apenas dele.