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“JUDY – MUITO ALÉM DO ARCO-ÍRIS” – Atuar, cantar e, acima de tudo, interpretar

Encarado como cinebiografia, JUDY – MUITO ALÉM DO ARCO-ÍRIS foge muito do tradicional e não tem êxito na proposta. O mesmo ocorre se o longa for visto como um musical. A bem da verdade, como filme, é bastante falho. Entretanto, está longe de ser ruim graças a um atributo marcante.

A obra se passa em 1968, ano em que a estrela Judy Garland começa uma turnê em Londres em razão do pior momento sofrido na carreira. Para isso, precisa sair de Los Angeles e, portanto, afastar-se dos filhos. Mesmo com a nova plateia, os desafios que ela precisa enfrentar são os mesmos de sempre, mais sozinha do que nunca.

(© Paris Filmes / Divulgação)

As técnicas de roteiro de cinebiografias são variadas – por exemplo: não linearidade (“Piaf – um hino ao amor”), linearidade (“A teoria de tudo”), revisionismo sobre si (“Rocketman”), revisionismo sobre outrem (“Amadeus”), foco em período específico da vida (“O discurso do Rei”), recorte de um episódio da vida e seus desdobramentos (“Jackie”). Não há regra. O que Tom EdgeJudy” faz é escolher um ponto de partida como fio condutor, seguindo a cronologia linear, mas trazendo flashbacks que, em tese, explicariam o comportamento da personalidade da biografada (semelhante a “Ray”). No longa, entretanto, ocorre um efeito colateral pelo qual o backstory, após um choque inicial, se torna repetitivo e entediante, pois não há inovação substancial entre as cenas do pretérito diegético.

Outro fator fundamental para retirar o brilho dos flashbacks é a ausência de Renée Zellweger. Não que Darci Shaw esteja mal no papel da jovem Judy, pelo contrário, sua juventude catapulta a identificação cinematográfica secundária, de modo que é difícil não se entristecer com os maus tratos que ela sofria pelo vilão. Aliás, nesse quesito, o filme é bem simplista, limitando-se no máximo a sugerir um abuso de teor sexual, que talvez explicasse o tratamento desmedido para além do intuito de lucro.

Não obstante, Zellweger tem em “Judy” uma das melhores interpretações femininas dos últimos anos, sem receio de hipérbole desmedida. O desafio é duplo: atuar como a lendária estrela e cantar músicas que faziam parte do seu repertório. A atriz, todavia, compreende que há uma diferença entre atuar e cantar, de um lado, e interpretar, de outro. De modo geral, as palavras são utilizadas como sinônimas, mas é possível designar a interpretação (e é esse o sentido empregado aqui) como um grau maior de comprometimento artístico.

O canto pode ser apenas como aproximação (como se fosse uma imitação, aproximando-se de como cantava o biografado, tal como fez Taron Egerton em “Rocketman”) ou mediante lip sync (tal qual Rami Malek em “Bohemian rhapsody”), que acaba sendo inferior; a atuação, em se tratando de um papel de uma pessoa real falecida há não tanto tempo (se comparada a Mozart, por exemplo), geralmente se reduz a replicar os trejeitos dessa pessoa. O que Zellweger faz está em outro patamar, porque ela apreende todo o sofrimento de Garland para traduzir esse sofrimento em todas as manifestações exigidas no longa – isto é, linguagem corporal, expressões faciais e entonação vocal (em diálogos e também nas canções).

Ao invés de demonstrar energicamente a insatisfação ao receber cento e cinquenta dólares, a atriz coloca na biografada um leve suspiro que confere verossimilhança ao inconformismo com uma sutileza sensível. Semelhante ocorre na cena do armário, em que, mesmo brincando com os filhos, é perceptível que a protagonista segura uma tristeza imensurável. A explosão aparece apenas quando necessário, como na cena do hotel. Mas há também transições mais complexas, como quando o receio é parcialmente largado na coxia para que, no palco, ela transmita uma falsa segurança. No desfecho, graças, em parte, a uma surpresa do roteiro, Zellweger se torna tão convincente que parece que o drama foi realmente sentido por ela (e não pela biografada).

Entre maternidade, escravização precoce no ramo do entretenimento, danos oriundos de remédios e homofobia, há pouco subtexto para ser aproveitado (sem olvidar o perfil completamente raso dos coadjuvantes). Sequer a mensagem expressa na sequência final, sobre esperança, acaba sendo convincente. Por outro lado, musicalmente, o filme deve agradar o público que não gosta do estilo tradicional segundo o qual o mundo parece parar enquanto o elenco canta e dança. Em “Judy”, as canções são quase todas intradiegéticas, porém entoadas sobre o palco (ou seja, mais próximo da vida real).

A direção de Rupert Goold aproveita pouco os simbolismos de “O mágico de Oz”, salvo pela cor vermelha, referência aos sapatos de rubi usados por Dorothy, que está quase sempre presente no figurino de Judy. O vestuário é bastante compatível com a época, usando tecidos com paetês. A maquiagem e o penteado usados na protagonista também são muito bons para tornar Zellweger extremamente parecida com Garland. Todavia, seria melhor trabalhar com maior apuro a narrativa em si, evitando pequenas contradições (por que Rosalyn se tornou tão empática de repente?) e obviedades (o relacionamento com Mickey), por exemplo. “Judy” comove e convence não pela estética, muito menos pelo script, mas por um trabalho grandioso de uma intérprete inspiradíssima.