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“JUVENTUDE TRANSVIADA” (1955) – Rebelde com causa

Monroe, Bowie, Bardot, Dylan, Kelly, Brando, Loren, Presley, Hepburn, Dean. Há artistas que transbordaram sua arte para se eternizar enquanto ícones culturais. Em JUVENTUDE TRANSVIADA, um deles consagrou seu ingresso no seleto panteão ao traduzir mais que uma arte, mas um modelo paradoxalmente inspirador de uma magnética e encantadora sofreguidão resultante da incômoda existência.

O filme começa com seu protagonista, Jim Stark, preso de madrugada por estar bêbado e causar desordem. Na delegacia, Jim encontra Judy e John: ela vagava sozinha pela rua após brigar com o pai; ele havia atirado em cachorros. Quando parece que os três formarão um firme vínculo de afeto, Buzz, namorado de Judy e líder de uma gangue do colégio, torna-se inimigo de Jim – uma inimizade que pode custar caro para todos.

(© WARNER BROS. / Divulgação)

Quando se fala em custo no sentido metafórico, a associação ao sentido financeiro é imediata, tornando-se necessário encaixar “Juventude transviada” em seu contexto histórico. Trata-se de um filme do pós-guerra, o que significa que o momento econômico da sociedade estadunidense é de prosperidade. É por isso que, em uma primeira leitura da obra – mais superficial -, Jim é um rebelde sem causa (tradução literal do título original do longa, “Rebel without a cause”), um rapaz insatisfeito, frustrado e furioso sem causa óbvia. Evidentemente, há muitos fatores que justificam a rebeldia de Jim, sendo o principal a falta de afeto no seio familiar.

Nas palavras do próprio protagonista, seus pais acreditam que o protegem mudando-se o tempo todo, de cidade em cidade. Por melhores que pudessem ser as suas intenções, não é disso que Jim (ou Judy, ou John) precisa(m). Encerrado o conflito mundial (Segunda Guerra), a juventude precisava de carinho, não de atritos dentro do lar. Uma juventude que precisava ser ouvida, não ouvir discussões. Jim não quer soluções paliativas para seus problemas (como a mudança de cidade), mas o suporte parental para enfrentá-los de acordo com seu norte moral (ainda que sejam sofridas as consequências).

O mesmo ocorre com Judy e John. Interpretada com forte emoção por Natalie Wood, a garota está em uma fase de transição que os pais (em especial o pai) não compreendem, rotulando como uma etapa “problemática”. O pai não a odeia, mas age como se odiasse, na sua visão. A vida, assim, se torna insuportável, fato que, expressado perante Jim, a aproxima dele. Como entender um genitor que não aceita um beijo porque “meninas da sua idade não fazem mais isso” enquanto, paradoxalmente, a censura com veemência por se maquiar? Qual deveria ser, então, o comportamento correto?

Certamente não o de John (“Platão”), vivido precisa e preciosamente por Sal Mineo. Não que seja uma personagem inequívoca, pelo contrário, a precisão do ator está na proposital dubiedade de Platão, repleto de mensagens subliminares no roteiro de Stewart Stern, adaptado por Irving Shulman a partir da história criada pelo diretor Nicholas Ray. Por exemplo, sua homossexualidade é sugerida em diversos momentos (considerando a época, a ausência de uma figura paterna ratifica essa interpretação), mas é fato que ele é um garoto inseguro e muito carente. Sua carência afetiva é ampliada na cena em que reclama para Jim e Judy por tê-lo abandonado, um inequívoco trauma em sua psique que justifica os atos subsequentes.

É em Jim que Judy e Platão encontram um suporte emocional. Ela, porque acredita ter descoberto o amor, em uma cena linda de declaração mútua de dois jovens que se conheceram há menos de dois dias. Ele, porque enxerga em Jim o pai que nunca teve. É aqui que realidade e ficção entram em contato, na medida em que o eterno James Dean, magnífico intérprete do protagonista, também tentou suprir essa carência. Para além das inúmeras teorias sobre a vida pessoal de Dean, são notórios seu amor pela velocidade e a sua busca por um pai (características similarmente compartilhadas por Dean e Jim). No primeiro caso, trata-se de circunstância assumida pelo próprio ator e que ceifou sua extremamente promissora carreira. No segundo, o respaldo está nos relatos de Leonard Rosenman, amigo pessoal e o responsável pela marcante e emocionante trilha musical de “Juventude transviada”.

Pelo vestuário, pelo talento e pela beleza, Dean tornou-se um gigantesco ídolo. O figurino do filme, assinado por Moss Mabry, é um dos melhores de sua época. A rebeldia de Jim pode não ficar clara no paletó e na gravata (cujo design alongado foi retomado hodiernamente, confirmando a circularidade da moda) da cena da delegacia, mas certamente transparece na inesquecível jaqueta vermelha do terceiro ato. É assim que ele ofusca a jaqueta preta de couro do vilão Buzz, cujo amarelo da camiseta não é capaz de dar o brilho desejado por ele. No máximo, é o mesmo amarelo do pijama do pai de Judy: este é o chefe da família, que, todavia, não obsta o rubro do casaco da filha representando a latente puberdade; aquele é o líder da gangue, mas admite gostar de Jim pela sua postura combativa. Todas as personagens têm um figurino muito bem pensado, inclusive Platão, cujas cores foscas indicam sua melancolia. Se ele não aceita o paletó de Jim na delegacia, já que ainda não o conhece, a jaqueta de veludo que ele usa adiante é igualmente simbólica em razão do tamanho, como se ele se enxergasse mais adulto do que realmente é.

Trata-se de um trabalho sensacional de Nicholas Ray, cineasta que talvez tenha ressignificado a juventude da época em moldes atemporais. Para além de ferramentas técnicas usadas com maestria (o contreplongée da cena do duelo entre Jim e Buzz, a câmera subjetiva em movimento de cento e oitenta graus quando chega a mãe de Jim enquanto ele está deitado no sofá), há esmero em detalhes que mesmo hoje são ignorados por alguns diretores. Nesse sentido, há um esplendoroso aproveitamento dos cenários, como na sequência da delegacia, logo no início, quando as personagens não ficam estáticas por não estarem no centro da ação da cena.

Em razão da morte prematura de James Dean e do quão promissor ele já era, posto que tenha atuado em poucos filmes (destacando-se somente em “Vidas amargas” e “Assim caminha a humanidade”, além de “Juventude transviada”), o filme do rebelde sem causa empalidece um pouco em face da imensa importância cultural que o ator passou a representar post mortem. Sim, Dean é maior que seus filmes – que, porém, não são clássicos à toa. Ele e Jim retrataram uma versão singular de uma ousadia inovadora, uma amálgama entre voracidade, fúria e carência. Logo, havia sim causa para a rebeldia.