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“LA PARLE” – A memória como força de transcendência

Não há exatamente como se explicar a memória humana. Partindo de um emaranhado de imagens e impressões, a sua constituição subverte as leis do tempo, determinando traços de nossa natureza que sequer somos capazes de investigar. Por se associar profundamente com o campo das impressões, esse conceito encontra uma ampla recepção dentro da cinematografia, munida de diversas abordagens. Partindo de um minimalismo bastante modesto, mas nem por isso menos artístico, é interessante a forma como o íntimo LA PARLE se apropria dessa fluidez.

Entrelaçando diferentes situações que se desenrolam em um verão na costa basca francesa, quatro amigos se reencontram e refletem sobre as suas vidas. Nascida no Brasil, Gabriela recebe Fanny, Simon e Kevin em meio à realização de um curta-metragem, que leva o grupo a questionar as suas experiências e relembrar de momentos do passado.

Direta e extremamente simples, não há muito a se dizer sobre a premissa do filme em questão. Filmado com a câmera de um IPHONE 11, o projeto é co-dirigido pelos mesmos nomes já mencionados, que se colocam como figuras reais igualmente responsáveis por estarem em frente e atrás das lentes. Isso proporciona uma pluralidade interessante na maneira como a montagem é articulada, misturando fluxos e digressões de pensamentos que vão se fundindo uns nos outros.

(© Pandora Fimes / Divulgação)

Embora seja identificável uma estruturação planejada, nem sempre o filme se apropria de um encadeamento lógico, o que realmente viabiliza a construção coletiva dos quatro rostos ali envolvidos. É como se os contornos de nacionalidade, acrescidos de outros traços de particularidade, fossem superados pela experimentação sensorial que os unifica.

Talvez o elemento que melhor justifique essa descrição abstrata esteja no título. Homônimo a uma famosa onda da região em que as personagens estão hospedadas, Gabriela reconhece a “La Parle” como uma espécie de “força de conexão”. Ela descreve uma crença local que atríbui à mistura, à transformação, à confusão de sentidos e experimentações o movimentar de suas águas.

Surge aí o melhor paralelo a própria manifestação do longa como unidade: uma confluência de vivências e ponderações, que marca onde aquelas figuras estiveram e deixaram de estar. A obra reflete sobre a sua própria existência como cristalização do tempo, originada do ímpeto de se tentar decifrar o mundo através de seu congelamento.

Isso fica igualmente claro nas conversas, em voice-off, de Gabriela Boeri com a própria avó, cuja memória deficiente obriga a primeira a se repetir, a retornar mais e mais vezes dentro de experiências recém vivenciadas. O mesmo se dá na marcante passagem em que Kevin Vanstaen exterioriza a sua obsessão pelo registro imagético, transpondo à câmera a responsabilidade de imortalizar o pacato decolar de um pássaro. A memória está fadada a ser substituida pelo digital, aqui não como uma condenação, mas como espécie de aceitação dessa nova maneira de se navegar pela memória.

Canções que se transmutam de um plano a outro, rastros luminosos que permanecem pela tela, e a própria simplicidade com a qual o filme é realizado são ainda outros traços que fortificam esse intercâmbio entre o homem e a lembrança, o primeiro eternamente assombrado pela última e condenado a investir em formas de se tentar capturá-la.

Dessa forma, é justamente no reconhecimento da universalidade desse exercício último que La Parle solidifica a sua realização. Apesar de estar aberto à digressão filosófica, ele se manifesta com a simplificidade de um diário de viagens, esculpido com muito calor pelo conjunto de quatro amigos. Transcendendo as arestas dos fotogramas de celular em que se constitui, o filme propõe uma interessante fusão entre os membros do grupo, fortificado por uma miscelânea de memórias e sensações que desconstrói as limitações da forma física.