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“LET THEM ALL TALK” – Relações humanas instrumentalizadas

No campo da amizade, o afeto que une as pessoas torna o vínculo um fim em si mesmo, sem “segundas intenções”. Esse tipo de relação se deteriora quando uma das partes instrumentaliza a outra, fazendo dela um objeto para atingir determinado propósito. Em LET THEM ALL TALK, a instrumentalização pretérita (e seus efeitos nocivos) aparece como um desafio para a retomada da amizade das personagens, o que se torna ainda mais difícil com a ampliação do ego de cada uma, no presente.

Alice é uma escritora de sucesso que está prestes a receber um prêmio. Como ela tem medo de viajar de avião, sua nova agente, Karen, sugere que ela viaje de navio, aproveitando o cruzeiro para avançar na escrita de seu novo livro, aguardado pela editora. Alice aceita a sugestão, porém com a condição de levar convidados: suas amigas dos tempos de faculdade, Susan e Roberta, e seu sobrinho, Tyler.

(© HBO Max / Divulgação)

Trata-se do primeiro trabalho de Deborah Eisenberg como roteirista, inexperiência que deveria ser compensada pela direção do veterano Steven Soderbergh. Não é esse o caso. O texto é diluído em suas temáticas, não deixando claro qual o seu mote para além de uma pueril lição de moral (segundo a qual as pessoas não devem ser instrumentalizadas porque isso é errado). As personagens são de uma egolatria fantástica, o que ensejaria embates fulminantes, mas a opção, em termos de tom, é o minimalismo. O problema é que a medida do minimalismo não é minimalista: Alice tem inveja de Kelvin e desmerece o seu trabalho, contudo ela apenas o critica pelas costas; Roberta e Alice têm um confronto, é verdade, mas a reação contida da segunda, do ponto de vista verbal, é decepcionante.

Soderbergh supre a fragilidade do texto com um elenco muito qualificado. Meryl Streep empresta seu carisma a Alice, que não é a mais simpática do grupo. Streep faz com que a internalização dos dissabores de Alice desaguem em reações tocantes (como quando Tyler “confessa” o que fazia sem ela saber), humanizando a personagem mesmo que do alto do seu egotismo. Candice Bergen imprime uma dose de cinismo em Roberta, deixando pairar uma dúvida sobre os sentimentos da personagem – estaria ela magoada com Alice ou apenas com inveja? O diretor completa o trio com outra atriz talentosa, Dianne Wiest, todavia a intérprete de Susan não tem a sorte das colegas, pois sua personagem é a pior aproveitada.

Susan é exemplo de que algumas falhas de roteiro não podem ser neutralizadas pela direção ou pela atuação. A interação entre Alice e Roberta não é bem trabalhada e tem diálogos pobres (quando desenvolvidos), todavia Streep e Bergen engrandecem os papéis. No caso de Wiest, Susan é uma personagem doce o suficiente para não ter um backstory pessoal traumático, mas fraca demais para ter um arco dramático próprio. A personagem aparece mencionando uma pessoa para quem precisa dar suporte antes de uma audiência para liberdade condicional – algo bastante sério e importante, é claro -, no entanto sua narrativa pessoal se dilui a ponto de ser apenas a pessoa com quem Roberta reclama da própria vida e do que Alice teria feito com ela.

O roteiro de Eisenberg deixa muitos temas subentendidos ou mal explicados, o que pode, é verdade, ser interpretado como sutileza, mas que parece mais uma falha, dada a fraqueza do script. Mais uma vez, Soderbergh disfarça as lacunas do texto através de uma montagem rápida e, de certo modo, econômica. Para mostrar a diferença entre Alice, Roberta e Susan, basta uma sequência elíptica mostrando as malas levadas por cada uma na viagem, o que diz muito, nesse caso, sobre suas personalidades. Um plano mostrando o exterior do navio (o vazio e o azul gelado do mar) é o elemento capaz de destacar (pela divergência visual) os tons amadeirados do interior. Variando entre o amarelo e o alaranjado, o design de produção coloca as personagens cercadas por cores quentes, o que realça a humanidade das interações ao mesmo tempo em que sugere o aumento da sua temperatura.

No visual, “Let them all talk” é muito bom, principalmente no figurino. Melancólica e enigmática, Alice está sempre de preto, sobriedade que combina com o local de onde vem, Nova York. Roberta é seu oposto: sua origem é Dallas, no Texas, um cenário country absolutamente distinto do que Alice está acostumada; seu vestuário é de cores vivas e detalhes nada tímidos, como rosas bordadas na camisa e camisa com franja. Enquanto Alice e Roberta adotam figurinos que as traduzem esteticamente, Tyler varia entre moletons e camisetas joviais, de um lado, e camisas e ternos, de outro. No primeiro caso está o verdadeiro Tyler, um garoto um pouco tímido e juvenil, papel em que Lucas Hedges convence mais; no segundo, ele quer impressionar Karen (Gemma Chan), mas a falsidade do perfil “Don Juan” é facilmente perceptível.

A contraposição entre ser e parecer (como no caso de Tyler) poderia dar bons frutos ao filme, porém seu foco está nas interações humanas instrumentalizadas. Comedido no drama e modesto na comédia, “Let them all talk” deixa muito a desejar no conteúdo e se salva na forma. Na verdade, a simples presença de Meryl Streep, Candice Bergen e Dianne Wiest em cena já seria capaz de evitar um eventual desastre.