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“LETRA MAIÚSCULA” – Apropriação maiúscula da História [9º ODC]

Regimes autoritários tendem a tentar reescrever a História, manipulando passado e presente segundo seus interesses políticos. Narrativas e imagens costumam ser reformulados para silenciar críticas da oposição e criar versões laudatórias de governos e líderes. Reconhecendo esse artifício, o diretor Radu Jude utiliza o caráter manipulador dos discursos contra o próprio autoritarismo, ao contar a pouco conhecida história do estudante Mugur Calinescu na Romênia da década de 1980 em LETRA MAIÚSCULA.

(© microFILM / Divulgação)

O jovem foi perseguido pela ditadura de Nicolae Ceausescu por ter escrito alguns dizeres relacionados à defesa de justiça e liberdade em um muro de Bucareste. O processo de investigação e julgamento é filmado de maneira inventiva. Inspirando-se em uma peça teatral e alternando de relatórios de segurança nacional para imagens televisivas da época, a produção expõe o dispositivo cinematográfico e sua natureza de representação parcial da realidade.

Historicamente falando, a Romênia no período retratado era uma república socialista soviética sob o controle de Moscou. Em um contexto de Guerra Fria, fazia-se ainda mais necessário um projeto de afirmação do regime por parte do ditador Ceausescu, como se não houvesse dissidências internas ou problemas no país. Portanto, Radu Jude sente a necessidade de contextualizar onde sua história ocorre, recorrendo a materiais televisivos criados como propaganda ou alienação: cenas elogiosas do governante, manifestações públicas de valorização do socialismo e do patriotismo, imagens otimistas de apoio da sociedade ao governo (principalmente as crianças), programas de entretenimento e ataques a fascismo ou ao capitalismo. Todos esses registros possuem uma decupagem dinâmica para os espectadores da época.

Observar os veículos oficiais poderia sugerir uma relação positiva entre Estado e cidadãos. Contudo, a montagem de Cătălin Cristuțiu impede que essa sensação seja tomada como verdadeira, afinal a Romênia vivia uma ditadura de censura e perseguição política aos opositores. Por meio de cortes secos, o montador alterna entre os registros de propaganda e dramatizações do caso de Mugur, filmadas com forte teor teatral e construídas para informar sobre os detalhes da investigação, os relatos das testemunhas, os posicionamentos de familiares e amigos do acusado e a própria versão do réu. Tais informações, relativas ao conteúdo das inscrições e às intenções de Mugur, são estabelecidas por atores que interpretam os personagens reais passando o texto de forma bastante contida e se posicionando de frente para a câmera.

Monólogos, diálogos e narrações em voice over percebidos nessas sequências são retirados diretamente dos arquivos da Securitate, a polícia secreta romena. A direção de atores busca propositalmente drenar a emoção e transmitir a frieza daqueles documentos, que registra a proibição da liberdade de expressão e o controle governamental sobre a população. Como pano de fundo para essas dramatizações, o diretor deixa claro que se trata de uma encenação através de cenários minimalistas próximos ao palco de um teatro. São deixados indícios discretos dos espaços onde a ação se desenrola, como a TV para indicar a casa de Mugur, o gravador para situar a delegacia de polícia e o quadro de sala de aula para indicar a escola – em cada um deles, também há cores vibrantes estilizadas que demarcam uma construção autoral de seu realizador.

Ao longo da narrativa, seria possível supor que as representações dos arquivos policiais encontram uma zona de conforto baseada na repetição dos elementos visuais. Aparentemente, seria sempre uma dinâmica pautada na quebra da quarta parede, em planos conjuntos com a câmera fixa, na disposição dos personagens mais distantes da câmera e nos cenários escurecidos e minimalistas. Porém, com o avanço das sequências o diretor intervém de modos variados sobre as imagens e a mise en scène, criando uma unidade estilística mais original para a proposta: a aproximação dos personagens da câmera, a iluminação maior dos ambientes, o uso de closes e a confrontação de personagens através do split screen ou da alternância de planos mais fechados sobre eles.   

A mesma ressalva poderia ser estendida ao tom dado ao filme pela combinação de materiais de propaganda oficial e encenação do julgamento do estudante. Seria limitador se a narrativa insistisse apenas no contraste crítico entre exaltação da ditadura e o obscurecimento das formas de resistência praticas pelos cidadãos, pois novamente se alcançaria um lugar artístico seguro. Aceitando o risco, o cineasta adota duas estratégias que fortalecem seu trabalho: o prolongamento do tempo diegético para quatro anos após o caso para mostrar as consequências das punições sobre o jovem; e a ambiguidade resultante da sobreposição dos discursos das figuras da repressão e das filmagens da Romênia após a derrocada do socialismo. Novamente, a interferência direta do realizador produz um efeito irônico que marca sua visão específica sobre o governo Ceausescu.

Seria possível também imaginar reações descontentes com o ritmo lento e a longa duração do documentário. É mais um risco consciente assumido por Radu Jude, que não abre mão das sensações escolhidas para seu projeto em nome de experiências fáceis e agradáveis. Até porque “Letra maiúscula” não é simplesmente uma denúncia sobre as arbitrariedades da ditadura romena na década de 1980; demonstra também que as imagens não são neutras nem objetivas, já que seguem algum propósito ideológico. Este pode ser legitimar ditadores ou revelar metalinguisticamente o fazer cinematográfico enquanto expõe a visão progressista de seu diretor.

* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).