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“LIÇÕES DE BLAGA” – O custo da “esperteza” [47 MICSP]

Há uma expressão bastante conhecida que diz que “o mundo é dos espertos”. De acordo com essa ideia, apenas as pessoas dispostas a usar da sagacidade (serem mais rápidas, aproveitarem as melhores oportunidades, não se deixarem enganar etc.) são as que colhem frutos em suas vidas. LIÇÕES DE BLAGA vai ao extremo dessa noção, associando esperteza à ilegalidade.

O marido de Blaga Naumova, Hristo, morreu recentemente, de modo que ela deseja dar às suas cinzas um túmulo de alta qualidade – e, portanto, caro. Disposta a usar o dinheiro que tem, ela acaba perdendo a quantia em razão de um golpe por telefone. Aos setenta anos, Blaga encontra dificuldade em encontrar um emprego para angariar o valor necessário. Assim, a solução pode ser se unir àqueles que praticam golpes.

(© Argo Film / Divulgação)

O roteiro de Simeon Ventsislavov e Stephan Komandarev adota o túmulo como um macguffin, o que justifica as explicações ruins do vendedor sobre a alta repetida do preço do produto (e talvez ele faça parte do grupo dos “espertos”). Para ela, o túmulo é como “um apartamento para a perpetuidade”, fazendo sentido que ela queira um bom túmulo em razão da maneira como ela venera Hristo, com um altar em casa onde estão, provisoriamente, as cinzas e uma fotografia dele com a qual ela conversa. Depois de perder a aliança de casamento, quando ela fala com o vendedor, roça os dedos na região anelar, sentindo um claro desconforto com essa ausência. O companheirismo de Blaga com Hristo é perceptível também pelo cenário de sua casa, com objetos (cadeira de rodas e remédios, especificamente) que sugerem que ele carecia de cuidados.

Para um script character driven, os roteiristas acertam em moldar Blaga como uma protagonista bem interessante. Ela é uma mulher simples, que se emociona com uma apresentação musical e vive em uma residência modesta (móveis antigos, decoração antiga…), mas que não perde o hábito professoral de corigir a fala alheia gramaticalmente errada. A primeira versão de Blaga, ainda ingênua, é facilmente pressionável, o que se conclui não apenas do fato de ter caído no golpe, mas principalmente da maneira ríspida com que trata sua aluna após seus planos aparentemente darem errado. No princípio, ela não está no grupo dos espertos, auferindo renda lícita dentro daquilo que construiu em sua carreira como professora de búlgaro. Inconformada, ela verbaliza que fez “tudo certo a vida toda” e mesmo assim “não ganhou nada”. “Lições de Blaga” trata da ingratidão do mundo: o caminho do ilícito pode ser menos trabalhoso e mais frutífero.

Há um crescendo em sua busca pelo dinheiro necessário para o túmulo, de modo que ela amplia seu leque de opções. Ao compreender que sua idade é um problema para ser contratada, contorna o obstáculo através da mentira, momento que marca sua “virada” para a “esperteza”. Na nova ocupação remunerada, ela se torna muito mais racional, completamente diferente da que sofreu o golpe. Parte disso é resultado do desempenho fenomenal de Eli Skorcheva – um dos melhores atributos do longa -, que é bastante expressiva nas emoções variadas encapsuladas no olhar de Blaga. Luto, desolação, indignação e determinação se amalgamam em uma mulher que encontra uma força que desconhecia. Sua versão do desfecho definitivamente não é a mesma que tremeu ao entregar as colheres.

Também a direção de Stephan Komandarev auxilia nessa transformação. Em termos de linguagem, o filme tem como referência remota “O filho de Saul”, com sua pouca profundidade de campo e closes (ainda que sem o mesmo radicalismo), enaltecendo as expressões da protagonista. A cena do golpe, filmada como um plano-sequência com a câmera na mão, transmite uma aflição ímpar, seja pela voz intimidadora pressionando Blaga, seja pelo seu nervosismo (derrubando objetos, ofegante, tremendo, se movimentando incessantemente). O filme é um drama, que, todavia, se transforma em suspense sufocante com a nova atividade da protagonista, por força da qual ela vai a locais ermos, filmados com luz escassa e câmera subjetiva, geralmente com sons exclusivamente intradiegéticos (de uma vela, de passos etc.).

No meio de tudo isso, o que é principal é a condição das pessoas idosas, que encontram obstáculos para auferir renda lícita, são forçadas a se encapsular na solidão (os diálogos com o filho são revoltantes) e ainda enxergados como dignos de pena (como faz a mulher do caixa, flagrantemente censurada por Blaga). Entretanto, há interessantes subtextos: a ineficiência das autoridades (as pessoas não acreditam em seu esforço e recebem nada diferente de pão e circo), o sensacionalismo da imprensa (que chega a ser cruel) e a política dos refugiados (questão representada pela aluna de Blaga). As lições aprendidas pela professora podem fazer com que ela atinja seus objetivos ou, no mínimo, não seja prejudicada tal qual quando sofreu o golpe. O custo disso, todavia, consiste em macular uma trajetória de reputação ilibada e integridade inquestionável.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).