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“OS COLONOS” – Lã manchada de sangue perde o seu valor [47 MICSP]

Uma sociedade em que todos vivem em harmonia, com igualdade e sem propriedade privada, acesso igual à educação, trabalho e lazer equilibrados, tolerância religiosa, justiça célere e com viés reabilitador, governo descentralizado e norteado pelo bem-estar de seus cidadãos: eis alguns traços da sociedade ideal que Thomas Morus descreve na segunda parte de “Utopia”, obra citada em OS COLONOS. O oposto disso é o que está no filme e se assemelha à primeira parte. do livro.

Em 1901, José Menéndez contrata o tenente Alexander MacLennan para cercar suas terras e assim abrir um “caminho seguro” para as suas ovelhas na região da Patagônia, entre o Chile e a Argentina. O Tenente assume a tarefa junto de Bill, um mercenário texano escolhido por Menéndez, e Segundo, um habilidoso mestiço (branco e indígena) chileno escolhido pelo próprio MacLennan. Na empreitada, civilização e barbárie se revelam através dos quatro e daqueles que cruzam seus caminhos.

(© Quijote Films / Divulgação)

Um primeiro e fundamental elemento de “Los colonos” é sua deslumbrante fotografia. Com razão de aspecto reduzida, a maioria dos planos está entre o verde e o pastel, simbolizando a aridez daquele local inóspito. Progressivamente, porém, a narrativa vai ganhando tons alaranjados nas folhas e fogueiras à medida que surgem confrontos para o trio. Prevalecem planos abertos e médios, com planos fechados nas poucas cenas dentro da casa de “Don” José (Alfredo Castro), simbolizando uma espécie de clausura, e closes que enfatizam a atuação hipnotizante de Camilo Arancibia no papel de Segundo (sua expressão de ódio contido é magnética).

A fotografia foge à sua regra, quanto às cores, em dois momentos da narrativa, com tons cinzentos: a cena da praia e a cena da neblina, dois momentos que parecem oníricos diante da natureza e do sangue que prevalecem. O vermelho se destaca no casaco do Tenente, combinando com sua personalidade sanguinária, e retorna com força no filtro usado nas imagens que acompanham os créditos finais. O figurino é bem pensado, dado o preto das roupas na cena posterior à elipse, traduzindo o opaco pensamento daquelas pessoas, e a emblemática mudança no vestuário de Rosa.

A cena da neblina, com pouca visibilidade, acompanha um desenho de som que eleva a sua qualidade: a mixagem faz eco dos tiros e aumenta o volume da música para depois cessá-la. Como um todo, o filme do diretor Felipe Gálvez Haberle tem influências claras do western, seja pela ambientação, seja pela estética imagética (os planos gerais das cavalgadas, os cenários ásperos) e sonora (as composições se assemelham às de Morricone). Eventualmente contemplativo (a cena na neve, em que são filmados os pássaros voando, o mar, a praia etc.), o longa conta com um homoerotismo (também presente em alguns western, maciçamente disfarçada) inicialmente sutil – a disputa com o Capitão Ambrósio (Agustín Rittano), seu discurso sobre os nativos em tom de fascínio e sua companhia do “pequeno Jimmy” – e depois mais claro com o Coronel Martin (Sam Spruell).

O homoerotismo, entretanto, não surge como opção ou desejo puro, mas como imposição. As pessoas são instrumento para vantagens (basta ver o que ocorre com o homem sem braço), os indígenas, equiparados a animais. O “ouro branco” que as ovelhas representam é mais valioso para Menéndez que qualquer um que trabalhe para ele, muito embora o Tenente mereça a sua defesa perante Vicuña (Marcelo Alonso). O diálogo entre Menéndez e Vicuña é bastante revelador sobre o modo como o proprietário das terras as enxerga. O que ele quer é viver em uma ilha onde é imperador, cercando uma área que na realidade não é sua, desprezando a capital (afinal, é um local que pretende se impor perante a ele), para isso, demoniza a imprensa (ao debochar dos “pasquins” lidos por Vicuña) e pratica revisionismo histórico (ao tratar do “Porco Vermelho”. Há uma convergência entre os dois, contudo, quando Vicuña explica que a preocupação é com as aparências, algo que apenas Rosa compreende.

Um último fator de relevo em “Los colonos” (no original) é a abordagem do animalesco. Por exemplo, quando o trio conhece o capitão Ambrósio, a disputa que ele e o tenente iniciam, de maneira flagrantemente gratuita, demonstra o quão bárbaros conseguem ser, e ainda progressivamente. Bill (Benjamin Westfall) censura o tenente pelo que come, mas não vê problemas em cometer um ato hediondo com uma mulher pelo simples fato de ser indígena. O tenente, por sua vez, confessa seu lado animalesco, como ao afirmar que “marinheiros e caubóis não são o mesmo animal” e ao brigar com Segundo em razão de seu olhar de reprovação, “como se fosse superior”. Não é uma questão de superioridade, mas de civilidade, como se conclui da sua conduta perante a mulher indígena.

Na realidade dos colonizadores, a linguagem que conhecem é a da coação: o tenente obriga Segundo a ir até a mulher, o coronel cobra um preço ao tenente. A música intradiegética posterior à elipse, bastante delicada, é na verdade um fingimento, a barbárie permanece, dado o discurso adotado pelos envolvidos. O que não pode é manchar a lã para que ela não perca o seu valor, no mais, o sangue não é problema.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).