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“LUTA POR JUSTIÇA” – Escalas variáveis [21 F.Rio]

O que existe em comum entre “Olhos que condenam“, “Infiltrado na Klan” e LUTA POR JUSTIÇA? As três histórias são poderosas inspirações em eventos reais sobre a discriminação racial nos EUA, abordando, respectivamente, a truculência policial, o supremacismo branco e injustiças do sistema jurídico e penitenciário. A mais recente das produções, dirigida por Destin Daniel Cretton, trata o caso de Walter McMillian, em 1987, alternando e combinando diferentes escalas do olhar: a perspectiva individual do homem e a dimensão coletiva da comunidade negra.

(© Warner Bros / Divulgação)

O incidente se passa no estado de Alabama, no sul dos EUA. No fim da década de 1980, McMillian é condenado à morte pelo assassinato de uma jovem branca de dezoito anos, apesar da ausência de vestígios materiais. Após algumas tentativas fracassadas de provar sua inocência, arrisca-se novamente aceitando o auxílio do recém-formado advogado Bryan Stevenson, que construiu sua carreira defendendo acusados injustamente e sem representação jurídica adequada. Envolvendo-se em uma investigação controversa que acirra os ânimos dos moradores locais, Bryan precisará enfrentar novos desafios em seu trabalho.    

O caso de Walter, apelidado de Johhny D., revela um entre muitos exemplos de racismo estrutural que não se limita a uma esfera particularizada. É a partir dessa experiência que os espectadores presenciam negros pobres, que não tiveram a oportunidade de um julgamento justo e assistência legal comprometida, sofrendo no corredor da morte; policiais agindo com truculência em abordagens nas estradas apenas quando avistavam negros em seus carros ou “cuidando” da segurança dos presídios e tribunais com violência; atitudes cotidianas e silenciosas de intolerância, como a proibição da entrada de negros em uma sessão até o último segundo possível sem nenhum motivo; e os planos-detalhe que captam olhares agressivos de autoridades racistas. Além disso, é com muita ironia que os brancos da cidade mencionam o memorial em homenagem à história real apresentada em “O sol é para todos“, como se isso os eximisse das responsabilidades pelo preconceito.  

Tais práticas discriminatórias não são etéreas e circunscritas a um discurso distante sobre ilegalidades de uma condenação forjada. As ameaças se abatem concretamente sobre os personagens, chegando, inclusive, a fazer parte do arco dramático de Bryan e a construir uma ambientação mais ampla para o cenário. Por exemplo, o defensor passa por uma arbitrária revista na entrada da prisão e uma intimidadora batida policial enquanto dirigia; a assistente Eva vê sua casa e família correrem risco por conta de um atentado a bomba; e o local é, constantemente, afetado pela hostilidade dos racistas direcionada a Johnny D. e pela “certeza” de que seria executado custe o que custar.

Abordar a esfera social do racismo não inviabiliza a construção de situações pessoais nas quais os personagens vivenciam momentos intimistas de liberação de emoções. A narrativa não se fecha em torno de Walter e também mostra seus amigos no corredor da morte, em especial Herbert, o senhor mais velho que passou a ter transtornos psicológicos após a Guerra do Vietnã. Destin Daniel Cretton desacelera o ritmo da trama central para permitir a experimentação do sofrimento de Walter – reflete sobre o que lhe aconteceu e ajuda um companheiro de cela a respirar diante da proximidade da execução.

Cada segmento, individual e estrutural, não se desenvolve apenas separadamente e encontra passagens de entrelaçamento. Assim, os indivíduos são integrados a uma comunidade maior, na qual experiências comuns são partilhadas e identificações são criadas. É o que acontece em sequências capazes de atravessar as escalas micro e macro: a execução de um dos personagens começa como algo pessoal, em seguida se conecta aos outros presos quando estes oferecem uma palavra de carinho por dizer que estariam juntos em sentimento, volta a se individualizar na cadeira da morte por ser o único executado, se reintegra aos colegas no instante em que eles gritam e batem nas grades em sinal de protesto e união, e retorna à dimensão particular quando os sons da cena são suspensos durante o eletrochoque. O ciclo prossegue enfocando a reação altamente dolorosa de Bryan, que funciona como estopim para lutar também contra a pena de morte como parte do sistema judicial.   

Os próprios personagens se desenvolvem em sintonia com a estrutura social mais ampla. Michael B. Jordan encarna Bryan como um advogado, inicialmente idealista e desconectado com a profundidade do racismo, que demonstra claramente sua opção pelo auxílio aos mais necessitados através da justiça; com o passar do tempo, faz com que sua visão de mundo esperançosa ganhe mais concretude e deixe a ingenuidade de lado para compreender que seu tipo de advocacia leva a lutas ainda mais sensíveis e complexas. Já Jamie Foxx interpreta Johnny D. com a contundência de encarar o preconceito sofrido sem jamais abaixar a cabeça e a sensibilidade de alguém que se relaciona com os outros negros presos e busca continuamente retornar ao lar e à sua família. Por outro lado, Brie Larson vive a personagem Eva sem grandes funções narrativas porque não possui arco próprio e, basicamente, atua como uma das possíveis escadas para a evolução de Bryan.

Mesmo tendo uma narrativa linear e tradicional, “Luta por justiça” oferece uma história poderosa que alterna e entrelaça as dimensões individuais e coletivas do racismo histórico nos EUA. O caso real é angustiante e capaz de despertar reações indignadas que leva a contínuas reflexões sobre a intolerância em toda parte do mundo e à validade ou não da pena de morte. Nesse sentido, se torna justificável a exposição das imagens reais das pessoas que viveram esses acontecimentos para atrelar a ficção à realidade e continuar trabalhando as escalas variáveis abertas com a trajetória de Walter McMillian.

*Filme assistido durante a cobertura da 21ª edição do Festival do Rio (21th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).