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“LUXOR” – O passado que o espectador não viu [44 MICSP]

Existem duas maneiras principais de lidar com o passado. A primeira maneira, talvez a mais comum, é enterrá-lo e deixá-lo lá, praticamente esquecido, preservado em uma moradia intocável. A segunda, mais traumática, é revivê-lo, geralmente de forma nostálgica, querendo que ele eventualmente retorne ou retirar dele algo novo. LUXOR faz uma contraposição entre as duas modalidades, revelando que a transição de uma para a outra pode ser tênue.

Hana é uma médica britânica que trabalha em zonas de conflito. Após cuidar de vítimas de guerra, ela viaja para Luxor, onde busca um período tranquilo depois do trauma do último trabalho. Passeando pela cidade, ela reencontra Sultan, um arqueólogo com quem namorou quando tinha seus vinte anos e viajava por lá. Quanto mais se aprofunda nas lembranças, mais incerto o futuro de Hana se torna.

(© Totem Films / Divulgação)

Zeina Durra filma “Luxor” no começo e no final em quadros similares, colocando sua protagonista dentro de um veículo, observando o que ocorre fora dele, como se estivesse vivendo um ciclo. De fato, Hana prefere a nostalgia da primeira viagem a Luxor ao trauma dos feridos de guerra, revelando-se uma pessoa de quem os outros gostam com facilidade (o motorista Ali, as colegas de Sultan…). Entretanto, ela não é uma protagonista forte porque sua incerteza é grande demais, gerando uma zona cinzenta na qual é difícil torcer por ela.

Ao mesmo tempo em que se revela vulnerável após a última experiência profissional, o discurso de Hana perante Sultan – salvo quando o revê pela primeira vez, oportunidade em que parece encabulada – é consideravelmente afiado (não se lembra da última vez em que esteve em Abydos, tampouco de como teve conhecimento da entrada de funcionários no hotel, dois passados, um recente e um distante, cujo esquecimento soa seletivo). Sultan está com a vontade clara de retomar (ou recomeçar) a relação (não perde a oportunidade para, por exemplo, colocar o braço sobre seus ombros), ao passo que a dúvida de Hana gera para ele um certo empenho, como se precisasse reconquistá-la.

Quando a situação se torna insustentável, a discussão em voice over mostra que ela ainda tem assuntos para lidar, relativos ao sofrimento profissional recente. Contudo, não fica claro a respeito de que ela estaria cansada. Se ela não quer um vínculo mais firme, que permanecesse encontrando homens como Carl (Michael Landes). Sultan (Karim Saleh) é tão unidimensional quanto a protagonista, parecendo o parceiro perfeito nos braços de quem ela poderia se jogar se assim quisesse. O problema é que a Hana de Andrea Riseborough não sabe o que quer – e o trabalho da atriz elastece ainda mais o semblante enigmático (para não dizer vazio) da personagem.

Em meio a cenários majestosos, “Luxor” é um filme mais contemplativo do que narrativo. No segundo aspecto, a trama é extremamente simples e deveras vaga, o que não é resultado de um plot no estilo character driven, mas de uma interiorização de sentimentos mal explorados (ou insuficiente exteriorizados no filme). Fica claro que Hana está frágil, mas não a medida da sua fragilidade, tampouco o que exatamente a tornou frágil (o que só se sabe através de afirmações nebulosas). O sofrimento dela, assim, é quase indecifrável, o que, no mínimo, dificulta a identificação cinematográfica secundária.

Do ponto de vista exclusivamente visual, os cenários são certamente encantadores, porém também aqui Hana é uma protagonista levemente apática. No meio das cores quentes do design de produção (como a decoração luxuosa do hotel, em dourado, e mesmo os sítios arqueológicos que visita, em coloração arenosa), seu figurino é prevalentemente de cores frias (azul e verde, em geral) e sempre em tonalidades foscas (cores claras, sem brilho ou destaque). Alguns planos parecem até monocromáticos, como aquele em que Hana visita Sarah (o vestuário da protagonista e as paredes do hotel são integralmente azuis) e o que ela se encosta em uma cerca (o verde do gramado e de sua roupa se confundem). Quando aparece Maria, de bicicleta, usando uma saia vermelha, o destaque é inevitável, ofuscando Hana.

O roteiro de “Luxor” aborda o passado a partir de diferentes pontos de vista. Em determinado momento, surge como algo que merece ser abandonado (quando Hana questiona Sultan sobre maldições). Permeia a narrativa, porém, a ideia segundo a qual escavar o pretérito, literal e simbolicamente, é uma tarefa necessária. Sultan e Hana conversam sobre o passado que poderia ter sido (a família) e sobre o que efetivamente foi (os “velhos tempos”). Ironicamente, pouco revelam sobre o passado que o espectador não viu (e que fica sem ver quando o longa se encerra).

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição de Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.