Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“M8 – QUANDO A MORTE SOCORRE A VIDA” – Tom de voz

A ideia do roteiro de M8 – QUANDO A MORTE SOCORRE A VIDA não é de todo ruim no que se refere à trama. A bandeira defendida por ele, por sua vez, é excelente, já que contemporânea e necessária. Porém, um filme não pode ser reduzida a uma ideia razoável de trama e uma bandeira elogiável. Enquanto obra cinematográfica, o longa (que conta com menos de noventa minutos) é muito fraco.

Em seu primeiro dia de aula no curso de Medicina, Maurício se atrasa. Na aula de anatomia, o desafio é dissecar um cadáver para estudos. O que o incomoda, contudo, não é o trabalho de cortar o corpo de uma pessoa morta, mas perceber que todos os cadáveres são de pessoas negras como Maurício, de iedntidades desconhecidas, ao passo que ele é o único aluno negro da turma.

(© Paris Filmes / Divulgação)

O roteiro da obra é de autoria do diretor Jeferson De juntamente com Felipe Sholl e a colaboração de Carolina Castro. Existe nele um projeto de plot que jamais sai do papel: um protagonista profundamente incomodado com o racismo estrutural e com o anonimato do cadáver M8. A construção de tudo isso, todavia, é bastante falha. O desconforto com o racismo estrutural parece ter como gatilho dois fatores: os protestos de rua (basta ao genocídio da juventude negra) e o contexto que o cerca. Quanto aos protestos, existe no texto uma tentativa de vinculação ao M8, mas o elo formado é demasiado frouxo. O anonimato do cadáver poderia gerar suspense, porém a associação com fatores sobrenaturais fragiliza o interesse do espectador.

O roteiro tem diversos furos, um deles, talvez o mais gritante, resulta dos encontros sobrenaturais de Maurício com M8. Em um primeiro momento, eles ocorrem de maneira disfarçada, colocando o próprio protagonista como cadáver – estranhamente, o diretor coloca a mesma cena duas vezes no curto (em termos de duração) filme (a primeira, no prólogo), o que acaba sendo despropositado (para não dizer que a cena é exatamente a mesma, a música se modifica, mas o plano seguinte, com Maurício acordando, retoma a identidade). Permeia a narrativa encontros entre os dois, ainda, sem nenhum diálogo, para transmitir incessantemente a ideia de que M8 não consegue ser esquecido por Maurício. O problema é que, em um deles, no terreiro, o protagonista ouve que o falecido quer falar com ele, porém essa conversa é absurdamente esquecida pelo roteiro. Ela não precisaria ocorrer, mas não poderia ser simplesmente descartada.

Vivido pelo esforçado Juan Paiva, Maurício cria uma teoria e vai atrás dela sem base nenhuma. Pior, o filme não chega a ser claro se ela tem fundamento. Teria M8 uma relação com os protestos? Não deixar isso claro não seria um problema se o suspense não fosse valorizado pelo filme. Quando se percebe que subtramas são reduzidas a fiapos – como o relacionamento entre Maurício e Suzana (Giulia Gayoso) – e que, na ausência de conteúdo, cenas são repetidas como loops aparentes (os colegas se abraçando no corredor, a mãe perguntando como foi na “escola” etc.), fica difícil exigir maior consistência da trama principal.

Evidentemente, “M8” é um filme sobre o racismo estrutural, o que com certeza é uma causa nobre. Entretanto, em termos cinematográficos, ele acaba tendo a sutileza de um hipopótamo: Maurício é confundido com um empregado da faculdade; todos os empregados são negros; a atendente do necrotério só dá atenção ao herói quando chega seu amigo (branco), Domingos (Bruno Peixoto); o porteiro de Suzana acha que ela é vítima de um crime por estar na companhia de Maurício etc.. Escancarar uma realidade não é problemático, o que poderia, por exemplo, justificar a cena da abordagem policial. O problema é metralhar a plateia para defender algo em intensidade tal que impede a reflexão.

Em outras palavras, o filme é tão explícito e intenso em sua abordagem que a mensagem que ele quer passar se dilui por ficar surreal. Quando Sal (Pietro Mário) dá um kit de presente para Maurício, a sutileza do gesto poderia ser muito melhor explorada – ele, um médico experiente e com dinheiro, poderia comprar (ou dar o dinheiro para alguém comprar) um presente novo para o jovem, ao invés de se livrar de objetos inúteis. Ao invés disso, o que a película faz é enfatizar o abismo cultural entre os dois, então Sal recita Kant para que o protagonista não entenda a mensagem logo no início. Ao invés de, no máximo, mencionar Marielle Franco de maneira discreta, seu rosto aparece em um muro mais de uma vez, bem claro para que não restem dúvidas sobre o que ela representa. Mas a questão é justamente essa: quem vê o filme e concorda com a sua mensagem já compreende a representatividade da falecida vereadora; quem discorda vai considerar tudo um exagero. E não sem razão: o filme martela a sua bandeira com força desnecessária, chega a ser grosseiro enquanto obra de ficção.

O cinema tem sua força não na agressividade, mas no poder da sugestão. Um discurso recebe mais atenção quando falado, não quando gritado. Por melhores que sejam os argumentos e por mais relevante (e urgente!) que seja a mensagem, o tom de voz normal é sempre preferível.

Em tempo: do elenco, apenas Mariana Nunes faz um bom trabalho. Os demais parecem ter tido outra direção para atuar.