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“MÁ SORTE NO SEXO OU PORNÔ ACIDENTAL” – Falar sobre sexo nem sempre é falar sobre sexo [45 MICSP]

* Filme vencedor do Urso de Ouro de Melhor Filme no Festival de Berlim.

Sexo é um assunto intimidador para muitas pessoas. Quando se fala nele, as palavras precisam ser bem escolhidas, geralmente dissimuladas (“fazer amor” ao invés de “transar”, “órgão genital” ao invés de “pinto”, “felação” ao invés de “boquete” etc.). O que se faz entre quatro paredes não é bem visto quando sai de seu primeiro ambiente, de modo que pessoas que assumem que assistem a filmes pornográficos são taxadas de depravadas ou algo do tipo. Azar de Emi, protagonista de MÁ SORTE NO SEXO OU PORNÔ ACIDENTAL.

Emi é uma professora que grava um filme de sexo com seu parceiro. Quando o filme vaza na internet, os pais de seus alunos exigem uma reunião para confrontá-la. Sem opção, a diretora da escola promove a reunião, porém Emi não está disposta a se demitir como os pais querem que ela faça.

(© 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo / Divulgação)

O diretor e o roteirista do filme é o mesmo, Radu Jude, contudo o longa parece ter, no mínimo, três responsáveis, pois é composto de três partes bastante distintas. Antes delas, todavia, há um prólogo bastante literal quanto ao filme em que Emi é a estrela. Além de apetrechos, a protagonista se utiliza de palavreado livre, certamente sem cogitar que o vídeo seria vazado. Os primeiros minutos são literais e explícitos (nudez, penetração, sexo oral etc.), porém a filmagem próxima aos atos praticados, associada à razão de aspecto reduzida, deixa claro tratar-se de pornografia caseira.

Na primeira parte, Jude cria uma narrativa tradicional que estabelece o contexto da sinopse, sobretudo as primeiras consequências sofridas por Emi (muito além do que ela imaginaria). Trata-se da fatia mais narrativa e mais personalista da obra: mais narrativa, porque acompanha diversos instantes da vida da protagonista, sem licenças poéticas de roteiro; mais personalista, porque o foco narrativo está exclusivamente na professora (que não está dando aula, mas se preparando para a difícil empreitada que enfrentará). Por outro lado, na direção, a primeira parte é a mais pesada e a mais sugestiva: mais pesada, porque é a seção em que Jude mais aparece enquanto diretor; mais sugestiva, porque a forma como ele aparece tem por escopo direcionar o raciocínio do espectador. Ao invés de deixar Emi passando pela vitrine de uma loja onde há um livro sobre Jesus ou por um muro onde há um grafite de seu rosto, o cineasta a faz parar na frente da vitrine, continua filmando o local para exibir a capa do livro mesmo quando ela sai e, igualmente, continua filmando o muro após a saída da protagonista.

Na estética, portanto, a primeira parte tem bastante personalidade, entendendo que o campo não deve ficar restrito a Emi. Mesmo quando ela está em um cenário específico, mais de uma vez a câmera se move para evidenciar algo que passaria despercebido mesmo se aparecesse (por exemplo, quando ela se aproxima das máquinas de caça-níquel, a câmera se desloca de onde ela está e mostra uma das máquinas, sem excluir sua fala ao telefone, diferenciando um pouco o som da imagem). Os movimentos não são à toa: quando ela fala no celular no mercado, a câmera muda para uma boneca estilo Barbie, insinuando que, para os pais, Emi precisava parecer uma Barbie.

Os assuntos na primeira parte cercam Emi, mas vão além dela, como no caso das poluições sonora (sons de britadeira e sirene, dentre outros, sem sons extradiegéticos) e visual (outdoors e cartazes) e da violência (a mulher no caixa, o homem na faixa de pedestre) – nos três casos, metáforas para a podridão que, igualmente, cerca a protagonista, interpretada com sobriedade por Katia Pascariu. Na segunda parte, entretanto, há um enorme rompimento: Radu Jude cria um dicionário subdividido em crítica social e em humor. Na crítica social, é singelíssimo (a imagem de uma criança com as costas repletas de hematomas, enquanto passa uma matéria sobre violência doméstica, é forte, mas direta demais); no humor, pouco engraçado. O recorte gráfico, sonoro e textual (legendas) é norteado por palavras esparsas em ordem alfabética (biblioteca, família, igreja, luxo…), muitas vezes com imagens reais, mas nunca é realmente inventivo. É um dicionário, afinal.

A terceira parte é a melhor, retomando a narrativa de Emi com humor ácido. É neste momento em que são escancarados os problemas sociais que o sexo é capaz de tirar do oculto, do olhar raso da exposição criminosa da intimidade alheia à simples hipocrisia moral. Como em brainstorm, o roteiro viaja entre Thomas Kuhn e Hannah Arendt, reflete sobre memorização versus raciocínio e mostra os que são antissemitas sem assumir e os que não acreditam na ciência sem assumir (o que não quer usar máscara). Quando coloca um homem assistindo ao pornô amador enquanto come uma banana, “Má sorte no sexo ou pornô acidental” não se apresenta nada inspirado. Por outro lado, quando o heterogêneo debate mescla um triste reflexo do real com doses de exagero e pitadas de surrealidade, a obra sobe muito de nível. No fim, o filme não é sobre pornografia ou mesmo sobre sexo.

** Filme assistido durante a cobertura da 45ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (MICSP).