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“MADAME” – Isso sim é comédia romântica

Apesar do nome genérico, MADAME está longe de ser um filme genérico. Trata-se de uma autêntica comédia romântica, melhor e mais charmosa que a imensa maioria que vem sendo produzida mecanicamente pelos estúdios.

O argumento do longa é uma comédia de erros: Anne, esposa de Bob, se muda com seu marido para Paris. Ela decide fazer um jantar com pessoas socialmente influentes, contando com doze pessoas sentadas à mesa. Com a chegada de Steven, filho de Bob, o número passa a ser treze, o que ela não admite, por ser supersticiosa. Para resolver o problema, ela coloca Maria, a governanta da sua casa, como a décima quarta convidada, orientando-a, todavia, no sentido de não revelar a própria identidade, devendo ser extremamente discreta para passar despercebida. O que Anne não previa era que um dos convidados, David, acabaria se apaixonando por Maria; e o que Maria não sabe é que David foi induzido a erro para acreditar que a governanta era da nobreza espanhola.

O plot é bastante perspicaz ao unir originalidade a um viés de crítica social. Questiona: é possível que duas pessoas bem diferentes se apaixonem verdadeiramente? Anne e Bob estão em faixas etárias muito distintas, enquanto Maria e David pertencem a classes sociais também muito diversas. Isso seria óbice para o amor? Na história, enquanto o primeiro casal costuma brigar (como se denota do prólogo), o segundo vive o ápice da paixão. Em determinado momento, Maria chega a aconselhar Anne, afirmando que ela talvez “também devesse acreditar no amor”.

Em meio a piadas como “toda mulher sabe mentir, é só sorrir”, o roteiro é ácido ao atribuir a Anne a fala de que “ninguém olha para uma empregada”. Há também um subtexto sagaz sobre xenofobia e estereótipos sobre as diferentes nacionalidades das personagens que fazem parte da obra, além de constatar uma futilidade das pessoas ricas (no caso, Anne e Bob), movidas a interesses financeiros ou meramente sexuais.

Não que o roteiro seja perfeito: por exemplo, Steven é fundamental enquanto engrenagem narrativa, mas não chega a ter um arco dramático próprio (ao menos relevante) – aliás, ele some em alguns momentos -, flertando com uma personagem de maneira inútil no script. Tom Hughes, assim, tem um papel que aparece menos, assim como o Bob de Harvey Keitel, cuja participação é diminuta – o que não exclui, contudo, suas engraçadíssimas falas em francês (em razão, ressalte-se, do trabalho do ator). Toni Collette tem em Anne um papel central (é o que dá nome ao filme), porém é ofuscada pela Maria de Rossy de Palma.

Maria é uma personagem fascinante que domina a produção, não apenas pelo brilhantismo do trabalho da atriz, mas também pelo seu crescimento individual durante a narrativa. Tímida no início e extremamente religiosa (além de citar Deus várias vezes em sua fala, há um crucifixo na parede de seu quarto), é através do amor que ela vai encontrando a liberdade das amarras da sua patroa. A sua felicidade é incômoda para Anne: se a empregadora não é realizada, a empregada também não pode ser.

Amanda Sthers tem em “Madame” um texto inteligente (Matthew Robbins foi corroteirista), sendo ótima também na direção. A sequência do jantar é excelente tanto pelo texto quanto pela filmagem em si, por exemplo ao preferir two-shot a uma montagem campo-contracampo, dando a melhor noção espacial possível na mise en scène. Na construção do cenário, é simbólico que, no quarto de Maria, haja um espelho pequeno em frente à cabeceira, enquanto o de Anne possui um espelho enorme em frente à penteadeira: metaforicamente, suas personalidades estão ali registradas. A fotografia também é bem feita no quesito iluminação, que é impecável nos ambientes escuros (realista no quarto de Anne e Bob, em tom azulado, usando contraluz em um belo plano com Maria e David). A música-tema instrumental, tocada em piano e violoncelo, é encantadora, sendo ainda uma surpresa muito positiva – já que combina com a sequência em que toca e com a película como um todo – a presença de “The ketchup song (asereje)”, de Las Ketchup, na trilha sonora.

Por fim, o filme tem um texto metalinguístico e consegue fazer o espectador rir (ainda que não sejam risadas ostensivas) e pensar ao mesmo tempo, algo cada vez mais raro em comédias românticas. Mas que devia existir mais.