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“MAIS QUE ESPECIAIS” – União como solução

Existem pessoas que são marginalizadas sumariamente pela sociedade. São pessoas que, em razão de algumas peculiaridades com as quais nasceram, não conseguem se encaixar no que a coletividade espera delas, sendo então defenestrada para instituições engessadas e que por vezes não conseguem dar a atenção que elas precisam para se encaixar. MAIS QUE ESPECIAIS mostra o outro lado da moeda: os que se dispõem, com base apenas na boa vontade e muita paciência, em ajudar. Eles não têm o dever, mas suprem a lacuna deixada pelos que têm.

Há quinze anos, Bruno e Malik são diretores de associações informais que cuidam de pessoas com transtorno do espectro autista – em especial os casos mais severos, que demandam maiores cuidados. Bruno acolhe crianças rejeitadas pelo sistema, Malik dá um curso para jovens carentes trabalharem como cuidadores. À rotina difícil se soma a antipatia estatal para com os que não são regulares.

(© California Filmes / Divulgação)

A obra é assinada por Olivier Nakache e Éric Toledano, dupla responsável por “Samba” e pelo aclamado “Intocáveis” (clique aqui para ler a nossa crítica). Com seus nomes, a expectativa para o resultado sobe e eles não decepcionam (embora o filme de 2011 seja melhor e mais original). Com uso de câmera na mão, imprimem a insegurança da condição das personagens (sobretudo em razão da inspeção a que a associação de Bruno está sendo submetida), porém a pouca profundidade de campo aproxima o público de tão cativantes personagens.

O filme exala ternura, seja quando Joseph (Benjamin Lesieur) encosta a cabeça no ombro de Bruno, seja quando Dylan consegue andar de mãos dadas tranquilamente com Valentin (Marco Locatelli). O tema tem potencial para ser bastante dramático, então os cineastas optam por colocar um pouco de humor cuja finalidade não é exclusivamente cômica: Dylan encontra uma moça por quem se interessa afetivamente, mas isso faz com que ele tenha maior disposição para criar o elo com Valentin (a comédia reside na primeira aproximação); Bruno tem um amigo que insiste em encontrar uma namorada para ele, mas não apenas ele não tem jeito com mulheres, como não tem vida pessoal suficiente para namorar.

Vincent Cassel é uma ótima escolha para o papel de Bruno porque um ator talentoso como ele consegue se dividir entre a comédia suave e o drama complexo, de modo que o diálogo atrapalhado com uma mulher soa orgânico, tanto quanto a emoção e o orgulho em ver Joseph sendo feliz autonomamente. Bruno é a personagem mais difícil e cativante do longa, pois é a fraternidade em pessoa. “Dar um jeito” é seu mantra, não importa como, tampouco quem ele precise enfrentar – os burocratas do governo ou seu contador. As ameaças ao seu trabalho estão fora da associação (os inspetores, o vizinho reclamando do barulho), mas também dentro dela, principalmente porque não é fácil encontrar quem se disponha na mesma intensidade.

É por isso que a dupla que faz com Malik dá certo. Reta Kateb é mais uma escolha sábia do elenco, pois o ator tem o perfil perfeito para o instrutor duro que quer formar cidadãos solidários. Sabendo que os jovens que ensina não têm um futuro promissor (afinal, eles também são marginalizados), ele enxerga no curso e no trabalho que oferece uma chance ainda mais valiosa – além, evidentemente, de nobre. Dylan pode se sentir perseguido, mas Malik tem uma personalidade paternal assim como Bruno, com a diferença que este é bem mais doce no trato pessoal. Mas a rigidez de Malik não é imotivada, até porque Dylan não apreende por completo a responsabilidade e a atenção necessária no ofício. Tarda para que o jovem, bem interpretado por Bryan Mialoundama, comece a perceber a proporção dessa responsabilidade.

Com uma montagem que dita o ritmo com poucos respiros (reduzidos praticamente a cenas sem diálogos e embaladas pela bela Leitmotiv), “Mais que especiais” tem um mote explícito e um subtexto que lhe é correspondente. O primeiro é a ineficácia estatal, pois as instituições não têm condições, por diversos motivos, de cuidar dos casos mais difíceis de TEA, às vezes defenestrando crianças de comportamento violento por não conseguir lidar com elas – e recorrendo aos informais como Bruno e Malik. Suas associações podem estar irregulares, mas dão o cuidado e mesmo o afeto que o sistema não é capaz de dar. O subtexto é a multiculturalidade francesa contemporânea, pois a aliança entre Bruno e Malik é, em última análise, entre um judeu e um árabe. Distantes dos clichês da inimizade, eles representam, pelo contrário, a sociedade que deve se unir, sem discriminações, para proteger os vulneráveis. Essa união já é difícil por si só, não precisando do Estado como mais um inimigo.