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“MALMKROG” – Debates filosóficos [44 MICSP]

Se Deus é bom, ele não é onipotente, pois um ser bom não permitiria a consagração de males que assolam o mundo. Se Ele é onipotente, não pode ser bom, já que estaria inerte diante desses males. Essa é apenas uma das discussões profundas de MALMKROG, cujo defeito não é a superficialidade no trato de seus temas.

Nikolai está recebendo seus amigos Madeleine, Olga, Ingrida e Edouard. Todos têm históricos de vida e, por conseguinte, opiniões, muito diferentes, o que não os impede de travar longos debates sobre os mais variados assuntos. No meio das discussões, aproveitam as fartas refeições proporcionadas pelo anfitrião. Sem saber, há um perigo que os ronda.

(© Mandragora / Divulgação)

Cristi Puiu escreveu o roteiro a partir do livro “Three conversations”, do russo Vladimir Solovyov, que se situa no âmbito da filosofia. O desafio já se revela aprioristicamente gigantesco, pois a linguagem literária filosófica tem idiossincrasias que parecem intransponíveis para a cinematográfica. Os assuntos são densos e demandam reflexão (eventualmente, pausas), algo que a leitura permite muito melhor do que o cinema. O argumento de que o filme pode ser visto mais de uma vez é inócuo, pois o livro também pode ser lido mais de uma vez. O aproveitamento do robusto conteúdo das ideias de Solovyov, desse modo, é muito menor do que poderia através da leitura da obra literária.

Como se não bastasse, Puiu parece fazer uma tradução quase literal do texto-base, o que mostra que não houve esforço adaptativo. O roteiro acaba tendo praticamente uma não-trama, com discussões filosóficas profundas, mas longas demais e bastante cansativas. A profundidade não é um problema, é salutar; o problema é que, na ausência de uma trama, ela se torna desinteressante, quase um convite à dispersão. O que era para ser um filme se torna um livro audiovisual sem trama. É verdade que existe um enredo envolvendo algumas personagens, mas parece que o elenco foi inflado para evitar um tédio ainda maior. Vale dizer, ao invés de fazer do filme uma conversa com duas personagens, a opção foi colocar mais personagens não para dar-lhes personalidade e desenvolvimento, mas para dar novas vozes (em sentido literal) às ideias.

É verdade que o design de produção do longa é muito bom. Ingrida (Diana Sakalauskaité), por exemplo, usa um vestido cor marsala que combina com seu discurso belicista; o mesmo ocorre com Olga (Marina Palii), cujo verde do vestuário se alinha com o mundo regrado por leis divinas mencionado por ela. As cadeiras com estofado cor amarelo mostarda reforçam o que os poucos cenários deixam claro, que é a riqueza ostentada por Nikolai (Frédéric Schulz-Richard). Entretanto, não se pode dizer que nenhuma dessas personagens (ou das outras, não citadas) exigiu do elenco um trabalho interpretativo, porquanto são personagens vazias repetindo um discurso filosófico que não é simbolicamente deles – e nem mesmo do roteirista. Nikolai e seus amigos são, parafraseando Montesquieu, a boca da filosofia.

É nesse quesito que inquestionavelmente reside a maior riqueza de “Malmkrog”. Da indispensabilidade dos confrontos bélicos ao militarismo exacerbado; da visão utilitarista do homicídio à associação entre morte e natureza; do colonialismo europeu à paz universal; do fim (no sentido de finalidade) do ser humano ao progresso da civilização. Os debates não são acalorados, mas provocativos, representando pontos de vista bem embasados sobre assuntos diversos, que vão desde os gregos antigos a Nietzsche (contemporâneo de Solovyov). É possível trazer alguns assuntos até mesmo para discursos contemporâneos, como a menção de Nikolai à hipocrisia de alguns cristãos (ao afirmar que enxerga Judas em alguns defensores zelosos do cristianismo, e Paulo naqueles que lançam um olhar crítico sobre a religião). Não existe propriamente um trema central que não a filosofia em si, o que é positivo, por um lado, por estimular reflexões em searas variadas, mas negativo, por outro, por não dar tempo para pensar sobre tudo aquilo.

Se no roteiro Cristi Puiu não faz um trabalho cativante, a direção revela bons predicados. Prevalecem planos longos, circunstância que, aliada à ausência de sons extradiegéticos, transmite naturalidade às cenas. Contudo, essa naturalidade se dissolve à medida que os diálogos se desenvolvem, já que rapidamente o público percebe que não são propriamente diálogos, mas, na melhor das hipóteses, debates filosóficos entre intelectuais altamente gabaritados. É enfadonho até mesmo para quem gosta de filosofia. Para esses, provavelmente a leitura do livro é mais indicada.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.