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“MANK” – Desequilíbrio de escolhas e efeitos

Seis anos após o lançamento de “Garota exemplar”, David Fincher comanda seu novo projeto banhado por controvérsias e conflitos no passado e no presente. Os bastidores conflituosos da produção de “Cidadão Kane”, os embates dentro de Hollywood e as próprias especificidades do trabalho recente do cineasta fazem parte de MANK. Para tentar dar conta de tantos elementos, a narrativa busca um cinismo, nem sempre expressivo, entre fatos históricos, estilos e temporalidades distintos. 

(© Netflix / Divulgação)

Percorrendo diversos momentos da década de 1930, a obra acompanha a trajetória tumultuada de Herman J. Mankiewicz durante a escrita do roteiro de “Cidadão Kane” e seus desentendimentos com Orson Welles pelo crédito do script. No presente narrativo, conta com a ajuda da enfermeira Frieda e da datilógrafa Rita Alexander para concluir o trabalho, após um acidente de carro o deixar preso à cama. No passado, através de flashbacks, a vida do homem é contada em relação à sua convivência com grandes nomes da indústria hollywoodiana na Grande Depressão. 

O primeiro aspecto a chamar atenção é, sem dúvida, a construção estética elaborada em conjunto com o diretor de fotografia Erik Messerschmidt. O preto e branco remete aos filmes da década de 1930 e 1940, bem como os contrastes deixados por focos de luz em cena e outros detalhes característicos das projeções daqueles anos (como o formato dos créditos iniciais e as “marcas de cigarro” no canto superior direito para indicar mudanças no rolo de filmagem). De certa maneira, é curioso como David Fincher se apropria de alguns traços estilísticos de Orson Welles levando em consideração a abordagem do roteiro de Jack Fincher para o icônico autor e sua relação com o protagonista – assim, estão lá a narrativa fragmentada cronologicamente e a grande profundidade de campo em algumas sequências.

Contudo, David Fincher abraça a ironia do personagem principal também nas decisões formais. Na aparência, a decupagem pode sugerir a emulação de produções clássicas e o estilo do diretor de “Cidadão Kane”; na prática, a construção visual incorpora marcas contemporâneas de um realizador formalista que trabalha técnicas modernas. Portanto, é autoral na forma como a textura da imagem é realçada digitalmente; em como os planos-sequência adquirem uma fluidez significativa; no modo como a plasticidade de certos planos se destacam (como a exaustão de Herman em uma festa); e em como a montagem manipula o tempo e as reações do público em dado momento do terceiro ato. Nesse sentido, o olhar para o passado segue uma artificialidade controlada, por exemplo, vista nas legendas com marcações de cenas de roteiro em certas passagens. 

Apesar de os usos estilísticos serem interessantes em si mesmos, eles não estão em sintonia com a dramaturgia. Isso se reflete na abordagem de polêmicas na Era de Ouro de Hollywood, como as mudanças geradas pelo advento do som, o poderio dos grandes estúdios, a sindicalização dos roteiristas e a crença da época de que os filmes pertenceriam aos produtores. Tais conflitos ficam sempre à margem da estilização significativa da linguagem e se comportam como acessórios sem potência, sendo que o desfile de figuras ilustres da história do cinema estadunidense pouco contribui para maximizar os efeitos dramáticos – roteiristas como George S. Kaufman, Joseph Mankiewicz e S.J. Perelman têm pouco a fazer e Louis B. Mayer e Irving Thalberg não escapam de versões unidimensionais cartunescas dignas de vilões simplificados. 

O texto também busca embates político-ideológicos do período, como as consequências da Grande Depressão, a ascensão do nazismo e o sentimento anticomunista. Em parte, esse subtexto contribui para o trabalho de Gary Oldman na composição de Mank como um sujeito alcoólatra, viciado em apostas, arrogante e provocador; assim como oferece nuances para Charles Dance caracterizar o magnata da mídia William Hearst e para Amanda Seyfried conceber a atriz Marion Davies (inspirações multifacetadas de personagens de “Cidadão Kane”). Entretanto, de modo predominante, falta impacto dramático aos conflitos políticos entre o protagonista e os produtores da MGM, além de o arco envolvendo falsos cinejornais soar bastante deslocado da sobriedade da narrativa. 

Muito provavelmente, o desequilíbrio entre dramaturgia e estética venha das particularidades artísticas de David Fincher. O cineasta se mostra mais expressivo quando seus projetos se caracterizam por personagens racionais, inteligentes e pouco emotivos (“Zodíaco”, “Garota exemplar” e “Seven”, por exemplo), pois figuras e conflitos mais emocionais recaem em uma impessoalidade fria (situação de “O curioso caso de Benjamin Button”). Em seu mais recente trabalho, ele desenvolve suas escolhas formais como um valor racional interessante, mas peca no desenvolvimento dramático que recobre a jornada de Mank – consequentemente, quando o confronto entre o roteirista e Orson Welles parece ganhar força, a narrativa já está se encerrando sem que a autoria de “Cidadão Kane” tivesse se tornado um tema instigante desde o início da produção. 

É curioso também perceber que “Mank” possui seus próprios dilemas quanto à sua elaboração: a versão inicial do roteiro foi escrita por Jack Fincher, pai do diretor, no início da década de 1990, passou por revisões de Eric Roth, porém os créditos ficaram apenas com o primeiro. A partir dessa trajetória dentro e fora do filme, a ironia cresce em torno de possíveis leituras da decisão de David Fincher escolher filmar um projeto com tal abordagem – será ele sarcasticamente dizendo que estaria em uma condição semelhante à de Herman J. Mankiewicz em Hollywood? Mesmo não sendo a única possibilidade, fica muito perceptível que faltou equilibrar estilo e temáticas em uma história contada com grande plasticidade, mas sem tanto impacto dramático.