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“MATRIX RESURRECTIONS” – Entre o necessário e o dispensável

Continuações que não eram inicialmente planejadas conduzem a um inevitável questionamento: é necessário continuar? MATRIX RESURRECTIONS certamente não é uma continuação necessária, sobretudo porque a trilogia encerra adequadamente a narrativa proposta. Não é por isso, todavia, que o quarto filme da franquia se torna dispensável. Entre o necessário e o dispensável há um limbo onde entram continuações como esta.

Anos após os eventos de “Matrix revolutions”, Neo segue uma vida comum em sua identidade original de Thomas Anderson, um bem-sucedido designer de jogos. Segundo seu terapeuta, seus sonhos são alucinações, não memórias, o que significa que nada daquilo é real, ainda que pareça; a mulher por quem se interessa pode ser semelhante a Trinity, mas não é a sua amada. Talvez Morpheus consiga convencê-lo a tomar a pílula vermelha para reencontrar a verdade.

(© WARNER BROS. / Divulgação)

É bastante evidente que a diretora Lana Wachowski aposta no poder da nostalgia para, sozinho, fazer com que o espectador se conecte à nova saga de Neo – mesmo sem saber se é propriamente uma continuação ou um recomeço. É por isso que os primeiros minutos soam como um remake ainda incerto sobre si mesmo, ganhando originalidade aos poucos. Mesmo a originalidade não elimina a força nostálgica, de modo que sobram flashes dos longas anteriores (leia-se, estão em demasia, mas cujos efeitos parecem pílulas vermelhas), além de reaparecerem personagens que, a bem da verdade, pouco agregam à narrativa.

Keanu Reeves retorna no papel principal, assim como Carrie-Anne Moss como Trinity. Reeves continua sendo um bom protagonista, porém a caracterização de uma de suas versões não é acertada. Barba e cabelos compridos não seriam, em tese, um problema, não fosse o fato de que é exatamente o mesmo visual que o ator retomou a fama (há pouco tempo, inclusive) nos filmes de ação, na franquia “John Wick”. Ou seja, quando ele aparece com esse visual, a associação automática não é com Neo, mas com Wick.

No elenco está também Yahya Abdul-Mateen II, em papel não adiantado aqui para evitar spoilers. Basta dizer que sua personagem tem importância apenas no início, em um breve subtexto sobre o propósito pessoal, e que o ator, nessa parte, vai muito bem. Jonathan Groff também tem bom desempenho, mas sua relevância é uma constante no longa, assim como a de Neil Patrick Harris, que não obtém o mesmo destaque. Fica bastante clara a intenção de Wachowski de fazer as mulheres brilharem mais, o que é representado por Bugs, a ótima adição vivida por Jessica Henwick. Como Trinity demora a surgir nas cenas de ação, Bugs assume essa função com louvor. Isso tudo sem desconsiderar outras personagens femininas de relevo e com poder maior que na trilogia original.

O texto, escrito pela diretora juntamente com David Mitchell e Aleksandar Hemon, é bastante metalinguístico, o que se torna engraçado em especial pelas piadas que surgem sem censura. Há uma crítica velada ao apego ao passado quando é mencionado que as mesmas histórias são repetidas, apenas com nomes e rostos diferentes, o que é sagaz justamente pela metalinguagem. Um dos assuntos explícitos, por exemplo, é sobre o tema da franquia, o que é capaz de render diversas reflexões. O núcleo permanece sendo o duelo entre escolha e destino, com abordagens menores sobre conceitos como realidade e ficção, além de novos conceitos que se tornam premissa da trama. Existe ainda uma crítica, igualmente expressa, à binariedade, algo que pode ser interpretado no sentido filosófico, como consta no texto, ou como uma metáfora para questões de gênero que permeiam o filme.

No figurino, destaca-se negativamente o de Morpheus, cujas cores fortes (azul, dourado) são infiéis em relação à personagem (ainda que tantos anos tenham se passado). Além disso, causa estranheza que a fotografia não seja tão verde quanto nos três primeiros filmes. As sequências de ação, por outro lado, são deveras fiéis em termos de intensidade e duração, algo pouco comum mesmo no gênero. Nem todas elas, contudo, são bem filmadas como na trilogia original – por exemplo, a cena do trem exagera nos cortes e se torna confusa também pela instabilidade da câmera, entretanto a luta de Neo e Smith é excelente. O CGI é melhor em razão dos avanços tecnológicos na área dentro de vinte anos. Há uma cena com chroma key bastante artificial, porém nesse caso a única explicação lógica é o fato de o cenário funcionar como uma bolha em que as personagens estão em segurança. O encerramento é uma pirotecnia digna do quanto a franquia representa na ação.

Nem tudo em “Matrix resurrections” é fácil de compreender. Alguns de seus simbolismos são um pouco obscuros (como o gato preto), outros, nem tanto (a ideia do céu de arco-íris). Enquanto continuação, o que importa do filme é que claramente existem ideias novas a serem transmitidas. A esse respeito, chama a atenção a mudança da mentalidade alternativa (nós ou eles) para a cumulativa (nós e eles), referindo-se à necessidade de união por um objetivo comum – algo que não era tamanha preocupação entre os anos 1999-2003. O quarto filme pode não ser necessário, mas seus subtextos (o último mencionado em especial) o afastam do dispensável. Muito do que lá é dito realmente precisa ser dito (ainda que isso pudesse ser feito por uma obra original).