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“MEDIDA PROVISÓRIA” – Os tempos de uma distopia

Debates e reflexões sobre os pensamentos utópicos e distópicos vêm de longa data na história, na filosofia e nas artes. O livro “Utopia” de Thomas More de 1516, as expectativas com os avanços científicos no século XIX, as propostas revolucionárias do socialismo no início do século XX, a descrença com as relação as ideologias no fim do século XX e o impacto de obras como “1984” e “Admirável mundo novo” compõem parte desse cenário. Qualquer que seja a definição para as utopias e distopias (categorias opostas ou complementares para um projeto de sociedade ideal que, de algum modo, foi distorcido), estas narrativas costumam relacionar passado, presente e futuro. Quando se fala em MEDIDA PROVISÓRIA, a narrativa cinematográfica distópica entrelaça diferentes temporalidades embora seus comentários sobre a contemporaneidade possam gerar desdobramentos questionáveis.

(© Elo Company / Divulgação)

Adaptado da peça teatral “Namíbia, Não!“, dirigida por Lázaro Ramos e escrita por Aldri Anunciação, o filme se passa em um local indefinido do Brasil em algum futuro. O governo brasileiro prepara uma reparação ao passado escravocrata do país, o que gera por parte do Congresso Nacional a decretação de uma medida provisória que obriga a população negra a retornar à África sob o pretexto de se reencontrarem com suas origens. Esta ação impacta diretamente o casal Antonio e Capitu, além de André (primo de Antonio), Enquanto a deportação é colocada em prática, os três personagens são afastados por força das circunstâncias e precisam decidir o que fazer para resistir à opressão da polícia e do governo.

Segundo certa tradição analítica pessimista constituída por pensadores liberais como Hannah Arendt, a utopia levaria necessariamente a uma distopia violenta e autoritária. Essa perspectiva pode ser imaginada quando a promissora sequência inicial é frustrada pela reação de setores políticos conservadores: tal qual Rosa Parks nos EUA segregacionista de 1955, Elenita é uma idosa símbolo da luta racial ao ser a primeira pessoa negra escolhida para receber uma reparação financeira pelos tempos de escravidão no país. A senhora vai até o banco, a imprensa está por perto para noticiar o fato (inclusive o jornalista André), mas a proposta foi barrada pouco antes de ser aplicada. Em seu lugar, os políticos criaram o projeto “Resgate-se” para levar os cidadãos negros para a África sob o argumento de que poderiam se reencontrar com seus ancestrais e sua história, porém tendo como objetivo real formar uma nação apenas de pessoas brancas. Inicialmente, o projeto é voluntário e é tratado como uma sátira absurda pela narrativa, por André, pelo advogado Antonio e pela médica Capitu a partir de alguns momentos cômicos provocativos.

No primeiro ato, a distopia comenta sobre questões do presente por mais que a premissa evoque o passado escravocrata. O racismo estrutural não é apresentado da forma velada como se convencionou dizer que aconteceria no Brasil, pois o diretor Lázaro Ramos está ciente de um tempo em que as pessoas preconceituosas manifestam sua intolerância diretamente. Logo, o público observa a criação da expressão “melanina acentuada” para se referir aos negros como se fosse algo empático, um rapaz em um bar comentar que se os negros estão incomodados com algo devem ir embora, um político expor sua contrariedade com medidas reparadoras, um segurança colocar um áudio racista para Antonio ouvir e uma senhora criticar as cotas raciais através do discurso da meritocracia. Tais frases e atitudes são representadas, principalmente, pela inspetora Isabel, vivida por Adriana Esteves, e por Izildinha, vizinha do casal Antonio e Capitu, vivida por Renata Sorrah. Em certa cena, elas reproduzem a existência de um suposto racismo reverso e se defendem de acusações de preconceito com a frase “eu já tive até amigos negros”. Além disso, outras referências contemporâneas são inseridas, como a ilustração de discursos de ódio na internet e uma locução no rádio sobre o fechamento de livrarias.

Outras dois paralelos com o presente são capazes de levar a promessa de uma utopia para a desestabilização de uma distopia. O Congresso Nacional se reúne para votar a medida provisória responsável por deportar os negros para a África com discursos que remetem à votação do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. Após a aprovação do projeto, a força policial é utilizada para capturar esses cidadãos e forçá-los a viajar para algum país africano em ações que lembram claramente a repressão feita pela polícia às manifestações populares e a violência de operações militares em determinadas áreas excluídas do país. Nesse momento, a projeção de um futuro distópico em que a violência, o racismo e a opressão atingem níveis ainda mais extremos integra o presente vivido ao passado histórico. Então, a MP é lançada no dia 13 de maio e tem como número 1888 (alusão direta à data da assinatura da Lei Áurea, responsável por abolir a escravidão sem se preocupar com a garantia de direitos de cidadania). Os desdobramentos da medida também acompanham aspectos históricos, como a captura de negros que jogavam capoeira na rua (uma prática de resistência à escravidão desde os tempos coloniais e também perseguida) e a formação de afrobunkers por negros dispostos a permanecer no Brasil e a resistir de alguma forma (algo como os quilombos existentes no período colonial).

A partir daí, as sequências se tornam ainda mais tensas e são filmadas por Lázaro Ramos com uma intensidade que explora os cenários como um elemento ameaçador. Antes do decreto da medida provisória, o diretor já havia antecipado um estilo que viria a utilizar quando o primeiro projeto de ida voluntária para a África foi anunciado: um plano fechado sobre um apartamento é gradativamente ampliado em planos mais abertos que percorrem todo um conjunto de edifícios, ao mesmo tempo que a câmera em movimento horizontal capta o excesso de construções de uma grande cidade e a poluição sonora de tantos ruídos produzidos. Quando a polícia começa a capturar os negros, uma estratégia semelhante é usada: Antonio escuta ao longe os sons de gritos, perseguições e tiros até poder visualizar o que acontecia do lado de fora de seu apartamento e Capitu foge de policiais que invadiram o hospital onde trabalhava em direção à rua, presenciando a violência do Estado contra a população – e o espectador assiste a tudo com a tensão criada pelos efeitos sonoros no fora de campo e pela movimentação de uma câmera trêmula fora de seu próprio eixo. Novamente passado, presente e futuro parecem estar de mãos dadas, representando cenas violentas que poderiam se passar durante a colonização portuguesa, o governo atual ou em uma distopia dominada pelo autoritarismo.

Estabelecido o conflito central, os personagens principais são levados a viver em dinâmicas específicas, porém semelhantes em sua restrição de movimentos. Antonio e André precisam ficar dentro do apartamento para não serem presos e deportados, resistindo como podem e tentando sobreviver com o mínimo de recursos. Se Alfred Enoch vive Antonio como um homem que gradualmente perde o equilíbrio em função da violência aplicada contra ele de maneira discreta dramaticamente, Seu Jorge chama a atenção toda para si como uma figura que passa da ironia para o desafio aberto à nova realidade, a busca por resistência e sobrevivência até o desnudamento de seu próprio corpo em uma atitude desesperada – nesse sentido, é muito simbólica a cena em que precisa pintar a pele de branco para tentar sair do apartamento. O maior problema do filme aparece quando a narrativa trabalha a ideia de violência, primeiramente quando Antonio e André se deparam com um sujeito comum que tenta aprisioná-los. Não só a resolução daquele momento soa simplista e quase caricatural (a gravação de um vídeo denúncia para ser espalhado pela internet e a mise-en-scène do confronto entre eles), como também o discurso pacifista de Antonio engloba a ideia esquemática de que as vítimas se igualariam aos agressores se reagissem violentamente. Ao invés de tratar com complexidade a questão, o roteiro lança mão de uma visão pouco problematizadora da desobediência civil e da violência.

Tais problemas se acentuam quando a narrativa traça um paralelo entre a violência do opressor e a do oprimido. Isso acontece em outro núcleo da trama, envolvendo Capitu e a performance mais intensa dramaticamente de Taís Araújo, que contém um grupo de negros que se escondeu em um afrobunker para pensar nas estratégias a serem adotadas. Inicialmente, este espaço oferece possibilidades muito ricas para discutir a contemporaneidade de novos quilombos e as formas possíveis de enfrentar um regime autoritário e opressor. No entanto, duas sequências aproximadas através de uma montagem paralela geram efeitos questionáveis para a intenção crítica da produção: a violência policial que termina no assassinato de um personagem negro e a violência do afrobunker que culmina no assassinato de um personagem gay, entrelaçadas pela narração em voice over de André que aborda ações espelhadas de agentes diferentes. Uma aproximação assim desconsidera o peso da força do Estado em comparação com as pessoas comuns e as distintas lógicas em torno da violência, seja para a perpetuação do poder e da dominação, seja para o enfrentamento de um cenário opressivo.

Medida provisória” faz parte de um contexto no qual o Brasil tem se interessado cada vez mais pelas narrativas distópicas. Recentemente, obras como “Voltei!“, “República” e “Narrativas do pós” trataram criativamente o governo Bolsonaro, a pandemia do coronavírus, os ataques à cultura e à arte, as realidades virtuais criadas pelas novas tecnologias e outros fatos atuais dentro da abordagem de uma distopia que comenta o presente. Apesar de desenvolver a questão da violência com decisões estéticas contraditórias, o filme busca um clímax e uma resolução que sejam poderosas o suficiente para marcar uma última impressão sensorial nos espectadores. As conclusões para Antonio, André e Capitu almejam a força das imagens, bem como a estilização visual dos protestos sociais que mesclam realidade e ficção, apesar de a montagem não explorar com tanto vigor essa intensidade dramática e ser confusa em certas passagens. Ainda assim, a estreia na direção de Lázaro Ramos tem um potencial significativo por construir uma rede distópica que, como a própria abordagem pede, fala sobre passado vivido, presente em curso e futuro temido.