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MENTE PERVERSA – Nem todos são iguais [43 MICSP]

Nem todos os agressores sexuais são iguais. Alguns agem por impulso esporádico, outros, por vontade constante e incontrolável; alguns se sentem atraídos por crianças, outros, por vítimas vulneráveis em geral; alguns sabem que estão fazendo algo ruim, outros, são convictos que não há nada de errado. MENTE PERVERSA tem um perfil bastante específico de agressor sexual e propõe-se a, na medida do possível, humanizá-lo através de um estudo de personagem bem vertical.

O protagonista do longa é Markus, um arquiteto que sente atração por meninos de cerca de dez ou doze anos de idade. Embora saiba que isso é errado e mesmo tentando resistir, essa atração é mais forte do que ele. Seu freio moral o impede de agir, mas ele não sabe até quando conseguirá aguentar às tentações que o rodeiam – o sobrinho, o filho da vizinha, um desconhecido sozinho no ônibus etc.

Imagem de cena do filme “Mente perversa

O tema é por si só polêmico. A tentativa de humanização de uma personagem de impulsos tão abjetos pode causar repulsa a algumas pessoas, o que se torna mais grave na medida em que o diretor Savaz Ceviz coloca o espectador ao lado de Markus. Assim, por exemplo, há planos subjetivos nos quais atentamos aos corpos dos garotos com um olhar pedofílico: a nuca, o cabelo e mesmo a sunga na piscina. Não há uma romantização da pedofilia, muito pelo contrário, há consenso de que aquilo é errado. Porém, não há como resistir: a atração de Markus é irresistível, então a experiência do espectador não pode dispensar o desconforto de vislumbrar aquela perspectiva.

Markus não é um herói, tampouco um anti-herói, é apenas um homem que padece de uma doença psicológica potencialmente danosa da qual ele quer se livrar. É importante perceber que, na ótica do filme (nesse ponto, bastante acertada), nem todos os pedófilos são iguais: aquele com quem o protagonista conversa é muito mais inconsequente e parece convicto de que as crianças têm condição de consentir com os avanços sexuais de um adulto. Guardadas as devidas proporções (principalmente quanto ao potencial lesivo), Markus é como um narcodependente: sabe que aquilo é ruim, mas não consegue resistir. Essa sensação de irresistibilidade incômoda é partilhada com o público, que sofre junto de Markus.

A ideia de verticalidade se revela pelo roteiro, também escrito por Ceviz. A psicopatologia de Markus o reduz à censurável obsessão por meninos, até porque eles estão em todos os lugares (e, ainda que não estejam, é assim que enxerga um obcecado). Há um humano por trás do desumano, o que, todavia, não exclui a desumanidade. Nessa ambivalência torturante, Max Riemelt faz um excelente trabalho interpretativo ao dividir o papel entre id e superego. A vontade (id) é inafastável, mas a autocensura (superego) também se faz presente. A plateia é capaz de perceber o quão difícil é reconhecer a pedofilia, ainda que para um profissional da saúde, bem como a dificuldade de encontrar amparo. O protagonista sente nojo de si, não consegue reconhecer com facilidade a própria condição. O ápice dramático não ocorre com ações radicais de Markus, mas em um monólogo no qual ele se desnuda sobre essa situação, expondo toda a sua vulnerabilidade e, principalmente, o desamparo. Talvez essa seja, inclusive, uma questão nuclear: e se essas pessoas (leia-se, pedófilos que enxergam a censurabilidade da pedofilia e querem se livrar dela) tivessem apoio, não seria possível salvá-las (e salvar as vítimas em potencial)?

Nessa luta consigo mesmo, Markus está em constante ebulição, ideia que combina com o título original da película, “Kopfplatzen” (em tradução livre, cabeça prestes a explodir), com seu desfecho e com uma rápida cena em que ele quase fica tonto em uma rua. Nesta, a filmagem em spinning shot em contreplongée é uma metáfora visual para a situação dramática de Markus, torturado pela iminência da explosão. Quando ele pratica luta em uma academia, a força com que ataca o saco de pancada é também uma metáfora para o ódio de si mesmo, além de uma maneira de extravasar a ebulição mental. Nem sempre, contudo, o filme acerta nos recursos imagéticos: as passagens com o lobo são quase risíveis, de tão escancaradas quanto ao sentido figurado, despido de função narrativa.

Markus não é um herói, não é um vilão; está mais para vítima do que para agressor, circunstâncias que, todavia, não se excluem (tampouco ele as exclui). Sua infelicidade se reflete no design de produção, considerando a intensidade de cores frias (preto, cinza, azul) no seu apartamento e no seu vestuário (em contraposição ao apartamento de Jessica, que tem cores quentes, como amarelo e laranja). A proposta de “Mente perversa” é tão espinhosa quanto seu objeto de estudo, mas é original e ousada. Retirar um pedófilo da vala comum dos pedófilos é uma abordagem perigosa, mas socialmente oportuna. A condição é ruim para a sociedade, mas também pode ser ruim para quem a ostenta.

* Filme assistido durante a cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.