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“MEU AMIGO TOTORO” – A falta que um antagonismo não faz

Segundo Robert McKee em “Story“, os eventos e as mudanças de uma história são movidos por alguma espécie de antagonismo (vilões, ameaças, conflitos de valores…). Por outro lado, o mesmo autor alerta que os roteiros podem ter uma estrutura, porém não se restringem a fórmulas fixas e convidam a quebra de paradigmas. É se distanciando de receitas ou obrigações narrativas que Hayao Miyazaki concebe MEU AMIGO TOTORO, uma consagrada animação dos estúdios Ghibli, sem se basear nos choques dramáticos tradicionais.  

(© Toho Company Ltd. / Divulgação)

O filme parte da mudança feita por Satsuki, Mei e seu pai para uma nova casa onde ficarão mais próximos da mãe hospitalizada. Após conhecer o lar e os vizinhos e ajudar nas atividades diárias, Mei encontra uma pequena passagem em seu quintal, que a leva ao lendário espírito da floresta conhecido como Totoro. A partir daí, ela e sua irmã convivem com a criatura e descobrem um amigo que as conduz para outra relação com a vida e com a natureza.    

A dificuldade de desenvolver uma sinopse muita detalhada, sem obviamente descrever cada instante do longa-metragem, revela como não há uma trama convencional. Ela não se apoia no movimento clássico de retirar os personagens de um mundo seguro através de algum desafio, bloquear a jornada com complicações progressivas e culminar na conquista da resolução final transformadora. Hayao Miyazaki prefere o tom observador em que se registra o cotidiano comum da família em sua nova moradia: a organização dos móveis, a limpeza do local, a apresentação para os vizinhos, a preparação das refeições, a realização dos afazeres domésticos, a visita ao hospital e as brincadeiras entre as irmãs. O encadeamento dessas passagens não são enfadonhas nem repetitivas graças ao fato de que as protagonistas têm a energia de converter cada ação banal em uma grande aventura.

Já no primeiro ato, os conflitos que poderiam ser naturalmente aguardados são dispensados, quebrando a expectativa do espectador. Mudar-se para outra residência poderia gerar a apreensão de conhecer novas pessoas e a própria construção em si. Porém, nenhum dos elementos foge do caráter fabular de conto de fadas ou assume um viés dramático, já que os personagens coadjuvantes são bondosos (a Granny acolhedora que cuida, conforta e ajuda) ou inocente (o menino Kanta troca caretas com Satsuki apenas em razão das ingênuas provocações da idade entre garotos e garotas) e a casa é caracterizada como mal-assombrada muito mais por brincadeira do que por algum perigo real (com um tom lúdico são mostradas criaturas circulares que se refugiam em áreas escuras e abandonadas e os efeitos “assustadores” do vento na frágil arquitetura).

Além de dispensar o possível conflito criado a partir da mudança, o roteiro faz o mesmo ao penetrar no universo fantasioso da floresta. Inspirando-se nas experiências de infância do próprio diretor e em elementos clássicos de “Alice no país das maravilhas” (o buraco por onde se passa para chegar a um mundo mágico e a figura felina que serve aqui de meio de transporte), a produção leva as protagonistas a conhecerem os espíritos do lugar, principalmente Totoro, mas também as criaturas menores que o acompanham. A principal delas é uma mistura de raposa japonesa, coruja e gato e expressiva visualmente graças ao tamanho, aos olhos grandes e aos sons emitidos ao abrir consideravelmente a boca. Ela, ao invés de sugerir algum perigo, se comporta como amigo imaginário das meninas – só visto pelas duas – que as auxilia em ocasiões de dificuldade, a exemplo de sua aparição para fazer companhia durante a chuva enquanto esperam a chegada do pai no ponto de ônibus.

A progressão da aventura fantástica continua derrubando expectativas. Quanto mais tempo Satsuki e Mei passam com Totoro, menor fica a dependência pelo aparecimento de conflitos. Apesar de nenhum antagonista surgir para ameaçar a floresta, as personagens cada vez mais se integram à natureza, algo recorrente nas preocupações ambientais de Miyazaki. Desse modo, encontram-se próximas de elementos naturais, como a já citada cena da chuva e os momentos em que usam sementes mágicas para uma plantação e voam com a criatura exclamando se sentirem como o vento. Nem a figura paterna, muitas vezes empregada para criar divergências geracionais, se interpõe entre elas e a fantasia já que incentiva a imaginação de ambas.  

Aproximadamente apenas nos últimos vinte minutos é estabelecido o choque entre o desejo das personagens e a imprevisibilidade dos acontecimentos: a preocupação das filhas com a saúde da mãe, aparentemente incapaz de sair do hospital no tempo previsto. A partir desse cenário, a narrativa reafirma seu estilo e a natureza da resolução: o conflito não advém de algum vilão, mas da própria reviravolta que a vida pode dar; a saída está no fantástico e no papel desempenhado por Totoro potencializados pela animação artesanal sem tantos recursos digitais mirabolantes do estúdio e pela trilha sonora lúdica de uma fábula; e a jornada das meninas envolve um vínculo sadio com o meio ambiente.

Não por acaso, “Meu amigo Totoro” é muito lembrada dentre as animações japonesas e o personagem do título referenciado até em espaços que ultrapassam a obra. Esse lugar conquistado é importante justamente por mostrar que, mesmo não sendo um filme de história convencional, consegue segurar o público pela mão e conduzi-lo por um universo no qual a beleza e a bondade imperam. Se houver algum contratempo no trajeto, ele pode não ser uma ameaça individualizada. E se houver a necessidade de algum auxílio, as forças da natureza podem zelar por quem merece.