“MINDHUNTER” [2ª Temporada] – Densidade social e psicológica
MINDHUNTER é uma série conhecida por trazer entrevistas feitas por um setor especial do FBI com serial killers condenados para apreender o perfil psicológico de outros criminosos semelhantes e facilitar futuras investigações. A série não se resume somente a essa imagem e a segunda temporada reafirma como ela vai além, assumindo maiores desafios narrativos: acrescentar novas camadas à dimensão policial da trama e construir arcos dramáticos para o trio principal de personagens. Tudo isso sendo feito enquanto a qualidade do material se eleva ainda mais.
A inspiração continua sendo o livro “Mindhunter: o primeiro caçador de serial killers americano” de John Douglas e Olshaker Mark. Após ter sofrido um ataque de pânico ao ser abraçado pelo assassino Ed Kemper, Holden Ford volta a trabalhar na Unidade de Ciência Comportamental ao lado de Bill Tench e da consultora Wendy Carr entrevistando serial killers famosos. Enquanto há uma mudança na diretoria e a unidade ganha os holofotes e maiores investimentos, uma onda de mortes de jovens negros em Atlanta leva os agentes para a cidade atrás do responsável. Durante as investigações, Holden, Bill e Wendy atravessam suas próprias trajetórias pessoais abaladas pela violência do entorno.
A premissa da temporada segue o fluxo dos episódios anteriores, pautando-se, inicialmente, em mais entrevistas com homicidas compulsivos aprisionados. Em todas, o processo de encontrar padrões de comportamento (traumas na infância e na criação dos pais, razões para o retorno à cena do crime, o reavivamento das sensações após os delitos..) e traçar o perfil psicológico para ações cruéis (o prazer sexual resultante dos assassinatos mesmo inexistindo violência sexual) se repete. Os novos capítulos trazem criminosos famosíssimos na história dos EUA – o Filho do Sam e Charles Manson são ouvidos e o serial killer BTK aparece recorrentemente em blocos da narrativa -, especialmente nas entrevistas fascinantemente construídas pelos diretores David Fincher, Andrew Dominik e Carl Franklin. Essas sequências são criadas calmamente através de um ritmo cadenciado, da alternância de enquadramentos gerais e fechados e da tensa progressão dramática do texto (as cenas começam a favor dos entrevistados ou dos entrevistadores e invertem o jogo de forças gradualmente).
Uma camada dramatúrgica antes voltada especificamente para o trabalho policial ganha outros contornos por conta dos casos em Atlanta. As dezenas de mortes de jovens negros mergulham os agentes em um universo incapaz de ser controlado totalmente e um mistério penoso demais para ser solucionado rapidamente: as convulsões oriundas das tensões sociais do racismo estrutural nos EUA, que afetam a cidade e seus habitantes e transbordam para a investigação. Holden e Bill precisam compreender as adversidades econômicas, o preconceito e a violência a que os negros estão submetidos na década de 1970, agravados pela brutalidade da Ku Klux Klan e pela revolta da população negra diante de tantos graves problemas. Além disso, os dois personagens são testados no trabalho de campo precisando adaptar sua técnicas àquela realidade específica e lidar com a burocracia e as influências políticas na investigação.
Conforme a série penetra cada vez mais na esfera social, a narrativa também abre espaço para o desenvolvimento de Holden. Se na primeira temporada o personagem percorreu um arco de degradação emocional devido ao profundo envolvimento com os assassinos, dessa vez ele precisa enfrentar dificuldades profissionais frente ao caso de Atlanta. O agente se debate entre o apego ao seu método investigativo absolutamente racional e as sutilezas subjetivas necessárias para se relacionar com os parentes das vítimas e com a política em torno da investigação – nesse sentido, muitas situações conflituosas nascem da incompreensão do personagem em relação às repercussões sociais e políticas das mortes e da sua convicção inabalável no perfil elaborado para o assassino. O transtorno emocional sofrido por Holden ao final da primeira e início da segunda temporada é o único elemento perdido em sua jornada, descartando rapidamente um obstáculo que parecia importante.
Porém, os desenvolvimentos dramáticos de Bill e Wendy são os pontos mais chamativos dos novos episódios, possuindo cada um deles um arco narrativo denso e bem estruturado. Diferentemente da primeira temporada, em que Holden concentrava as atenções e chamava para si o foco dramatúrgico, agora há um compartilhamento entre os três personagens a ponto de seguirem suas próprias trajetórias perceptíveis. Bill é desafiado a conciliar as obrigações profissionais e os problemas familiares, percorrendo uma jornada exaustiva na qual a violência atinge seus familiares de modo surpreendente; e Wendy mantém uma vida dupla entre trabalho e intimidade, escondendo sua orientação sexual como mecanismo de proteção para o ambiente profissional e para a época em que vive e entrando em conflito com os próprios sentimentos.
Todos os arcos possuem em comum a melancolia e a inquietação não espetacularizada diante da violência. Tais sensações acompanham os eventos ligados a cada personagem, mas também transbordam na fotografia dessaturada e lavada que retira a intensidade das cores, mesmo nas locações externas, e estabelece uma identidade visual sombria ou depressiva; e na trilha sonora apreensiva que recorre ao mesmo padrão de notas aflitivo quando o suspense toma conta ou alguma revelação chocante está prestes a ser feita, não precisando elevar o ritmo musical para causar incômodo no espectador. Demonstração ainda mais clara de como esse sentimento melancólico se encontra pela mescla de recursos estéticos e desenvolvimento dos personagens é a utilização da canção “Guilt” de Marianne Faithfull: a letra da música estabelece um paralelo entre Holden, Bill e Wendy, machucados pela culpa que sentem, apesar de não terem feito nada de errado.
Lembrar de “Mindhunter” apenas como uma série que traz policiais entrevistando serial killers em uma prisão para conhecer mais a psicologia criminal e capturar outros assassinos semelhantes é reducionista. A segunda temporada aponta para as possibilidades narrativas em relação aos seus personagens e aos desdobramentos sociais da violência extrema, que atestam a riqueza do material. Ao mesmo tempo que investe em densidade social e psicológica, a série também consegue melhorar o que já era muito bom.
Um resultado de todos os filmes que já viu.