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“MINHA INCRÍVEL WANDA” – Dona de si e crível [44 MICSP]

O título de MINHA INCRÍVEL WANDA é bastante elucidativo sobre como funciona o filme. O enredo sugere uma dramédia não muito engraçada nem muito dramática, o que também é verdade. Isso não significa, todavia, que o filme não possa surpreender. Alguns plot twists inseridos oportunamente e uma teia de relações complexas mostram que o filme pode não ser incrível, mas é muito bom.

Wanda trabalha para a família Wegmeister-Gloor, especificamente como cuidadora de Josef, o patriarca, que se tornou paraplégico em razão de um derrame. Ele está prestes a fazer aniversário, então Elsa, sua esposa, pede para Wanda ajudar na limpeza e organização para a festa. O relacionamento de Wanda com a família, porém, é espinhoso: Elsa quer pagar pouco pelos serviços adicionais; Gregor, filho do casal, tem interesse amoroso na moça; e Sophie, a outra filha, a acusa de furto. Ainda assim, o emprego é importante para Wanda, pois a renda que aufere é enviada para seus pais, na Polônia, que estão cuidando de seus filhos.

(© Zodiac Pictures / Divulgação)

O filme de Bettina Oberli formula uma teia relativamente complexa de interações. Todas as personagens sofrem modificações durante o filme, parte em razão das circunstâncias que movem a narrativa por direções inesperadas. O texto, escrito por Oberli com Cooky Ziesche, é bem mais requintado do que aparenta. Dividido em quatro capítulos, o script surpreende em diversos momentos, tendo um ponto de partida bastante morno se considerados seus desdobramentos. Segredos são revelados, soluções aparecem e novos conflitos surgem, como um efeito dominó imprevisível e, ainda assim, fluido. Nada parece forçado, mas consequência plausível dentro daquele contexto.

As personagens do roteiro são também ótimas (assim como a maioria do elenco). Wanda (Agnieszka Grochowska, excelente) surge como uma mulher séria (no ônibus, é a única que não está cantando, além disso, o protetor na testa mostra que não dormiu) que sofre em silêncio em razão da distância dos filhos. Como protagonista ativa, ela agita a narrativa ao centralizar o interesse (para bem ou para mal) de todos da família, revelando-se motivada por algo um pouco óbvio a priori, mas que não é tão unidimensional quanto pode parecer. Em uma cena específica, fundamental na trama, percebe-se que Wanda tem semblante de indiferença, certamente com foco no objetivo final. O quarto apertado – na cena em que Gregor vai ao local, a filmagem em plongée aumenta a sensação de clausura – praticamente no porão da casa tem seu porquê.

Josef (André Jung, também excelente) enxerga Wanda como um anjo em sua vida, inclusive chamando-a de anjo quando ela retorna de viagem. Metaforicamente, a direção dá um vislumbre dessa perspectiva ao colocá-la de camiseta branca e estendendo os braços para abrir as cortinas do quarto do patrão. Ela tem, de fato, um quê angelical (ao menos para ele). Por outro lado, a relação dele com os familiares não é das melhores – ou, mais precisamente, com todos da cidade, que o parabenizam (no aniversário) não por gostar dele, mas por interesse em seu dinheiro (o que ele menciona expressamente para Wanda). Sua condição de saúde o coloca marginalizado na família; ironicamente, ele trata o cachorro como a família aparentemente queria tratá-lo (no mínimo, enxergando como um fardo).

A partir do principal plot twist, tudo muda. Elsa (Marthe Keller, discreta), de cabeça quente, deixa transparecer uma faceta vingativa. Sophie (Birgit Minichmayr, quase tão bem quanto Jung e Grochowska, sobretudo pelas nuances da personagem) já tinha deixado bem claro o que pensa sobre Wanda, mas a situação se modifica quando percebe que pode tirar proveito pessoal – e, quem sabe, elidir algo que considera uma falha pessoal (e que acaba unindo mãe e filha). Quando recebe Wanda na rodoviária, Sophie está de camisa branca, símbolo da aura pacifista que passou a adotar. O incômodo que tinha, por exemplo, com o interesse do irmão “na cuidadora” (falando com um certo desdém), já não é mais problema, desde que Wanda aceite sua proposta. Gregor (Jacob Matschenz, o mais fraco do elenco) é o que menos se encaixa na narrativa, porém possui um arco dramático bem delineado (é uma pena que a personagem não seja indispensável como as demais).

Na perspectiva sonora, a trilha musical de “Minha incrível Wanda” é versátil o suficiente para transmitir a dramaticidade das cenas e, quando cabível, dialogar com elas – é o caso de “Bang bang (my baby shot me down)”, que surge quando a protagonista dá um tiro (em linguagem figurada) nas demais personagens. Na mise em scène, tudo é bem encaixado, principalmente a já mencionada cena que constitui o principal plot twist. Do ponto de vista simbólico, ela é uma pintura. Outro exemplo é quando Wanda trabalha na cozinha, usando o vestido amarelo caro (uma roupa feita para dar brilho a quem a usa) por baixo de um avental (que obsta o brilho).

Wanda pode não ser incrível. Pelo contrário, sua conduta é bastante crível. Ela não tem dono, ao revés, é dona de si e da própria conduta. Até no título o filme consegue uma ironia sagaz.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.