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“MISS MARX” – Exaltação da hipocrisia ou exposição da sucumbência? [44 MICSP]

Em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels lançaram “O manifesto comunista”, livro no qual defenderam, entre outras ideias, que o capitalismo oprime as mulheres, tratando-as como cidadãs de segunda classe tanto no seio familiar quanto no social. Dentro do marxismo feminista, adotou-se raciocínio similar ao dos autores, buscando a emancipação da mulher através do desmantelamento do sistema capitalista e da adoção de uma sociedade proletária igualitária. A filha mais nova de Marx, Eleanor, prosseguiu os estudos do pai. MISS MARX mostra a sua trajetória após a morte do genitor.

Inteligente e livre, Eleanor é uma das primeiras mulheres a unir socialismo e feminismo, participando das lutas dos trabalhadores e defendendo mais direitos para as mulheres e a abolição do trabalho infantil. Em 1883, ela conhece Edward Aveling, um médico e dramaturgo que pertencia ao mesmo círculo de amizades, por quem acaba se apaixonando.

(© Celluloid Dreams / Divulgação)

O filme começa no ano em que Marx falece e dá a entender que foi Eleanor quem reuniu as anotações do pai e prosseguiu sua obra. Entretanto, foi Engels quem o fez, lançando, em 1884, “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, texto inovador ao abordar a opressão feminina do ponto de vista institucional. Eleanor também tem seus escritos, mas não ganhou a mesma notoriedade. Ironicamente, na visão do filme, parcela da responsabilidade disso se deve à submissão ao amado Edward, que certamente lhe rendeu inúmeros dissabores.

Em relação ao pai, Eleanor parece nutrir quase um Complexo de Electra, idealizando uma figura que não tinha os traços perfeitos que ela imputava a ele. Ainda que o filme possa não ser fiel aos fatos, na sua ótica (que é o que importa), havia um endeusamento do pai, que não fazia jus a tamanha devoção, ao menos não para alguém que defendia a bandeira feminina. Não seria exagerado afirmar que, dentro do filme, Tussy (apelido da protagonista) era um pouco hipócrita. Não faz sentido defender a emancipação feminina e, ao mesmo tempo, não apenas adorar uma figura masculina que aparentemente não correspondia ao seu ideal, mas – e ainda mais grave – aceitar a submissão a que Edward a submetia.

O dinheiro é uma das primeiras causas de fissuras no relacionamento entre os dois, enquanto que uma formalidade como o casamento é coerentemente deixada em segundo plano (de acordo com ela, “é uma instituição falida”, o que a torna irrelevante). A convivência em estado marital é o que importa. Mas o problema não é esse. O problema é que Edward claramente não a fazia feliz e subjugava as mulheres a uma condição inferior (basta ver o que ele fez com a mulher que aborda Tussy na rua, ou a piada machista que fez). Na melhor das hipóteses, portanto, o filme de Susanna Nicchiarelli é sobre o triunfo do amor sobre a ideologia; na pior, sobre uma figura histórica cujo discurso era distinto da prática pessoal.

Dentre os diversos equívocos da película, o visual não é um deles: sobram bordados, flores e vestuários avolumados, com a prevalência das cores verde e vermelha. Entretanto, há um exagero na iluminação, porque velas não acendem tanto quanto aparece no filme. Do ponto de vista sonoro, a trilha musical é desastrosa. Não faz nenhum sentido tocar um rock pesado em um filme de época – leia-se, em cuja época o rock não havia nascido -, de modo que a trilha é um constante incômodo tanto pelo equívoco histórico quanto pelo ritmo em completo descompasso. Quando tocam músicas no piano (como na roda de amigos fumando ópio), não há problema, mas a escolha prevalente, o rock, é terrível.

Ainda do ponto de vista musical, há uma cena em que um grupo de pessoas canta uma música em francês, mesma canção tocada em forma de rock na cena seguinte. A sequência é quase tão pavorosa quanto aquela a que Romola Garai é submetida, interpretando Eleanor como uma mulher tendo delírios sozinha, cantando e dançando ao som de – sem surpresa – rock. Se faz sentido a agitação do ponto de vista metafórico, o gênero musical, como dito, é problemático, sendo possível traduzir as alucinações da droga de maneiras muito mais plausíveis.

A direção é terrível ao acreditar que, para a contextualização, bastam imagens originais em preto e branco e uma cena despropositada com um projetor. Narrativamente, o roteiro de Nicchiarelli cria uma subtrama com um sobrinho de Tussy que falece (a subtrama) antes de qualquer desenvolvimento. Há preguiça em criar diálogos, pois apenas isso explica a inorgânica quebra da quarta parede, colocando a protagonista falando sozinha sobre suas ideias sem um interlocutor claro. A quebra da quarta parede é uma ferramenta ótima, mas somente quando bem utilizada, o que definitivamente não é o caso. Talvez tenha sido melhor filmar Eleanor falando sozinha, pois alguns diálogos são tão ruins que chegam ao nível do ridículo (como aquele em que Paul fala do pássaro que o visitava quando estava preso).

Miss Marx” só não é pior porque cumpre um requisito mínimo, que é uma trama perceptível. A protagonista é incoerente; a direção, catastrófica; o roteiro, muito ruim. Não fica claro se o filme é a exaltação de uma mulher que defendia ideias que não aplicava na vida privada ou se é uma história de uma mulher que sucumbiu a um romance mais forte que suas ideias. Nos dois casos, é um filme muito fraco.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.