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“MONSTRO” – Conte sua história e se humanize

Em determinado momento de MONSTRO, um professor de escola pública para seus alunos do clube de cinema o filme “Rashomon” de Akira Kurosawa. Durante o debate, ele conta como foi seu primeiro encontro com a atual esposa para demonstrar como o mesmo evento pode possibilitar mais de um ponto de vista e, por isso, mais de uma verdade. Um dos estudantes que participa da atividade é Steve Harmon, um adolescente negro de 17 anos que sente na própria pele o poder das narrativas e de seus autores para os rumos de diversas vidas. Desse modo, a trajetória estimula a pensar como poder contar sua própria história é algo fundamental em diferentes sentidos.

(© Netflix / Divulgação)

Steve Harmon mora com os pais e o irmão mais novo no Harlem, em Nova York. Ele tem o sonho de se tornar cineasta, o que explica as incontáveis vezes em que anda pelas ruas com sua câmera para registrar o que vê e edita o material em casa. Uma vida aparentemente tranquila é interrompida quando é preso e levado para um centro de detenção, após supostamente ter participado de um assalto a uma mercearia que terminou com o assassinato do comerciante. A partir daí, precisa prova sua inocência e enfrentar um sistema judiciário que o desumaniza.

Levando-se em consideração a situação inesperada em que o personagem é colocado, a primeira possibilidade para se imaginar por quê ele deveria narrar sua versão dos fatos é o esforço para ser inocentado no julgamento. Segundo a promotoria, o jovem teria sido olheiro para ajudar James King e Richard Evans a praticarem o crime; segundo a defesa, ele seria um bom garoto que teve a infelicidade de estar na mercearia na hora errada. Mais especificamente, Steve quer provar que não é o monstro como diz o promotor Petrocelli ou como suspeita o júri (algo sugerido pelos closes enigmáticos nos jurados, que observam o réu como se tentassem decifrá-lo). Além disso, a forma como é tratado na prisão reforça a acusação de que seria uma figura monstruosa, já que os guardas são abusivos, alguns detentos são ameaçadores e a atmosfera do local à noite é preenchida por gritos angustiantes e uma opressão traumatizante.

Um modo de enfrentar essa desumanização é através da própria narração pessoal do protagonista, pois, além de conseguir um veredito favorável, pode mostrar quem realmente é. Portanto, as cenas em que Steve debate com a turma e o professor não são uma metalinguagem apelativa a respeito da importância de se contar uma história e do poder sensorial das narrativas. Apesar de Leroy Sawicki se comportar de maneira limitadora quando afirma que uma obra audiovisual precisa ter começo, meio e fim, suas aulas oferecem lições valiosas para pensar o valor da arte para a constituição de identidades: um artista sabe que história contar porque precisa quase fisiologicamente liberá-la para o mundo e a estética é a forma como o realizador dá sentido à sua existência. Essas ideias moldam o arco narrativo de um adolescente que pretende comprovar que não é um criminoso nem um monstro.

A metalinguagem não é somente citada, mas incorporada ao fluxo narrativo pelo diretor Anthony Mandler (não por coincidência a estria do cineasta é uma produção com intervenções tão explícitas da direção, considerando-se seus trabalhos anteriores no comando de videoclipes de Rihanna, Beyoncé, Shakira e Taylow Swift). À exceção da abertura, todo o restante do filme assume a perspectiva subjetiva do protagonista, que toma as rédeas da trama e a conta de acordo com o seu olhar. Por isso, há muitos momentos de narração em voice over em que o personagem refuta acusações infundadas e dá vazão aos seus sentimentos; de contextualização das cenas como o cabeçalho de um roteiro que indica a cronologia e a locação dos acontecimentos; e uma narrativa não linear que transita entre passado e presente, seguindo o fluxo fragmentado de memórias e emoções de uma pessoa.

Dentro da abordagem metalinguística, o diretor também estabelece a humanização de Steve através das passagens em que ele registra imagens de seu entorno. O aspirante a cineasta tem uma sensibilidade artística palpável, abraçada pelo filme ao destacar a atenção dada pelo jovem à luz do sol, aos enquadramentos das pessoas que filma e as texturas/filtros em preto e branco das cenas cotidianas captadas por sua máquina fotográfica. Em termos expressivos, Anthony Mandler busca o olhar de Steve e reafirma que o eixo da obra está nele e não no restante do elenco, o que pode justificar a menor densidade dos personagens coadjuvantes (especialmente, os pais vividos por Jeffrey Wright e Jennifer Hudson). Na realidade, o que é importa é seguir o turbilhão de dúvidas, desejos e apreensões materializado pela atuação de Kelvin Harrison Jr., significativa nas sequências de explosão emocional e ainda mais poderosa quando demonstra introspectivamente seus sentimentos.

Nenhum processo de humanização a partir da narração da própria história estaria completo se não se considerasse a dimensão social e racial de Steve. Os abusos que sofre cometidos pela polícia e pelo sistema judiciário (a prisão, o tratamento no presídio e as suposições de que seria um monstro) não são tipos de violência tão facilmente projetados se fosse branco. Além disso, a exclusão social e a marginalização se fazem presentes no universo que rodeia o protagonista, tanto sob a forma de gangues que atuam no Harlem quanto na relação estabelecida com James (um símbolo das origens sociais da criminalidade, já que apenas aparece em cenas em que está à margem da sociedade assumindo uma postura intimidadora). As interações entre eles não se resumem à simples tese do desvirtuamento de jovens ingênuos por más companhias, pois Steve nem o público compreendem tão bem como essa relação começou e progrediu, mas sentem um peso de ameaça a cada aparição de James.

Mesmo que a dimensão social do roteiro pareça sutil demais e as convenções de filmes de tribunal sejam previsíveis, “Monstro” se fortalece sempre que adota a visão subjetiva do protagonista (por exemplo, é o que ocorre no anúncio do veredito). Concluído o conflito central, Steve é humanizado como uma figura complexa e contraditória, devido à ambiguidade da revelação do que aconteceu na mercearia – parte do mistério é revelada, outra parte se amplia, principalmente porque ele não pode ser visto dentro de um recorte maniqueísta. Assim, é tão importante ver cada vez mais figuras diversas no cinema contarem suas histórias e, no caso dos personagens negros, serem representados de modo muito mais complexo do que como simples monstros.