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“MONTY PHYTON EM BUSCA DO CÁLICE SAGRADO” – Reimaginação anárquica da História

Robert Rosenstone é um pesquisador que propõe a ideia de que o cinema nos faz acessar o passado de modo distinto ao dos historiadores e professores. A conexão que construímos com outros períodos históricos através de filmes de temáticas históricas ocorre em nível sensorial e emocional. É assim que MONTY PHYTON EM BUSCA DO CÁLICE SAGRADO não se coloca como um retrato da Idade Média comprometido com pesquisas acadêmicas. Na verdade, o compromisso da produção é mobilizar um humor satírico para criar farsas, caricaturas e críticas que deem conta do que foi a Europa Ocidental durante os séculos V e XV. 

(© Columbia Pictures do Brasil/ Divulgação)

A originalidade de fazer um filme histórico dentro da comédia pertence ao grupo Monty Phyton, composto por Eric Idle, John Cleese, Terry Jones, Michael Palin, Graham Chapman e Terry Gilliam. Inicialmente, os comediantes produziam esquetes para seu programa humorístico “Monty Phyton’s flying circus” iniciado em 1969, até chegarem aos cinemas com longas-metragens. Em 1975, lançaram a obra que contava a procura do rei Arthur por cavaleiros que o acompanhassem na busca do Santo Graal. Nessa jornada, o rei dos bretões é seguido por Sir Lancelot, Sir Robin e Sir Galahad. 

Uma das marcas do humor do grupo é a forma como trabalham o absurdo. Essa abordagem se articula à representação de tudo que foi patético e deplorável no sistema feudal e na época correspondente. A primeira insensatez exposta pela narrativa diz respeito ao modelo político e social baseado no acúmulo de poder pela aristocracia dona de terras, enquanto os camponeses são oprimidos pela miséria e pela violência do regime. Em duas cenas, a demonstração de superioridade do rei Arthur é interrompida pelo nonsense: a total divagação do assunto de sua discussão com um homem no alto de um castelo para falar sobre cocos e andorinhas, além da irrupção de anacronismos históricos quando dois trabalhadores o confrontam falando sobre anarcossindicalismo e legitimação popular de governos. Logo, notamos como o rei dos bretões não se impõe como gostaria. 

Os séculos pertencentes à Idade Média também foram caracterizados por outros aspectos que podem ser lidos na ordem do absurdo, que ultrapassam as características políticas e adentram nos valores sociais e culturais. Atentos às diversas possibilidades de sátira, os diretores Terry Jones e Terry Gilliam abordam de maneira cartunesca a cultura bélica dos guerreiros, as rivalidades entre Inglaterra e França, a banalização da morte em tempos de peste negra, as alianças de famílias aristocráticas por meio do casamento e a perseguição de mulheres sob a acusação de bruxaria. A variedade de temas é acompanhada pela variedade de escolhas para encenar tais questionamentos, como o humor criado pela falta de lógica na cena da condenação de uma mulher à fogueira, a violência caricatural e inesperada em um duelo de espadas e a súbita aparição de uma sequência musical após momentos “violentos”. 

Do mesmo modo que o nonsense cria resoluções imprevisíveis para cada cena, o exagero consciente possibilita a formação de um universo singular para representar a Idade Média ficcionalizada. A todo instante, os realizadores demonstram que sua versão para o passado é uma construção subjetiva a partir da comédia metalinguística, em que o próprio fazer cinematográfico é parodiado. Há brincadeiras com a trilha sonora e as legendas nos créditos iniciais; subversões na montagem paralela quando soldados observam Sir Lancelot correr ao longe; ironias nos sons diegéticos percebidas na origem dos ruídos das esporas dos cavalos; quebra da quarta parede e diálogos entre personagens de cenas distantes umas das outras; e a aparição/desaparecimento surpreendente de um narrador considerado desnecessário até pelos personagens. Ao invés de a metalinguagem ser somente um recurso apelativo, ela contribuiu para as críticas, por exemplo, à afetação de gestos e atitudes dos nobres. 

Por outro lado, a autoconsciência dos elementos de filmagem permite a criação de outros dois mundos que habitam a representação de época. Ao lado de uma Idade Média fictícia, existe nossa realidade que o filme sempre prefere deixar em uma posição secundária por não desejar uma abordagem objetiva e tradicional – vemos isso simbolicamente quando a narrativa dispensa agressivamente o relato de um historiador como figura de autoridade e insere breves passagens de uma investigação sobre o ocorrido. Além dele, há um universo moldado pela farsa de uma fábula que amplifica a sensação de uma fantasia sendo contada – somos levados, literalmente, às páginas de um livro por onde a trama se desenrola de forma anárquica cada vez que o live-action dá lugar à animação e a eventos fantásticos. Essas escolhas formais se relacionam com a jornada percorrida pelo rei Arthur e pelos cavaleiros da Távola Redonda em meio a aventuras nada ortodoxas. 

O anarquismo impresso em cada momento em que os personagens se aventuram sozinhos consolida a unidade estilística caricatural, cômica e crítica para a Inglaterra do século X. Ao se encontrarem com o cavaleiro de três cabeças, os guerreiros do “Ni”, os dois castelos povoados por mulheres e franceses e os feiticeiros com informações privilegiadas, Arthur, Lancelot, Robin e Galahad avançam por caminhos nem sempre úteis para a missão. Então, muitas vezes os desafios que aparecem não são enfrentados porque eles fogem ou agem fora de tom, além das situações que vivenciam pouco contribuírem para a concretização do objetivo. Ao longo do percurso, é curiosa a busca se tornar etérea e distante ao mesmo tempo que outras críticas são feitas à Igreja Católica (especialmente, o poder da instituição de manobrar o catolicismo e justificar guerras e tiranias). 

Como Robert Rosenstone alertou, historiadores e público preocupados com fidelidade histórica não ficarão satisfeitos com “Monty Phyton em busca do cálice sagrado”. O filme até pode trazer aspectos evocativos do passado medieval (figurinos, figuras históricas, fatos marcantes…), mas seu trabalho criativo nos lembra que o cinema se apropria da História com suas próprias visões expressivas e intenções artísticas. Assim, os três universos que compõem a produção (a ficcionalização da Idade Média, a fantasia do absurdo e a aparição da nossa realidade) são mobilizados para escancarar o quão patético era o mundo medieval. Afinal, quando os universos se chocam, fica mais evidente que o passado é interpretado à luz do presente e reconstruído segundo as possibilidades de mentes criativas.