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“MUITO AMOR PRA DAR” – Muitas mudanças pra lidar

Geralmente, um filme que absorve em sua narrativa o arco dramático do protagonista ou a proposta temática pode ter mais probabilidades de oferecer uma boa experiência cinematográfica. Isso porque tema e linguagem se encontrariam para explorar ao máximo o roteiro e os recursos visuais do cinema. Entretanto, a comédia argentina MUITO AMOR PRA DAR não concretiza essa possibilidade, mesmo que o gênero e o ponto de vista da produção se transformem, assim como o personagem principal.

(© Netflix / Divulgação)

O novo título original Netflix acompanha o ortopedista Fernando e sua vida inusitada. Ele é um homem de duas famílias: é casado com Paula, com quem tem duas filhas, em Mar del Plata; e com Vera, com quem tem um filho, em Buenos Aires. Justifica a bigamia para si mesmo dizendo que é apaixonado pelas duas mulheres, porém esconde esses relacionamentos por quase dez anos. O que parecia seguro muda completamente  no dia em que sofre um acidente e suas esposas se conhecem, fazendo com que a partir daí elas se virem contra ele.

Inicialmente, a narrativa adota a perspectiva de Fernando, como fica explícito na abertura, quando ele aparece caído no chão e a narração em voice over comenta que seu coração é grande o suficiente para amar duas mulheres. Com o tempo, seguimos o médico em um percurso para entender como chegou à situação da cena inicial, enquanto a comédia se estabelece. É esse o tom presente em sua vida dupla e na rotina semanal: ter dois celulares e dois carros, passar a semana até quinta-feira com uma família e o fim de semana com a outra, inventar desculpas para explicar suas ausências, trabalhar em hospitais diferentes, entre outros artifícios. O desenvolvimento da premissa tenta retirar o humor dos esforços cada vez mais absurdos feitos pelo protagonista para não ser descoberto, porém são tão previsíveis que o efeito cômico é baixo.

Se por um lado o roteiro depende de facilitações narrativas e de momentos cômicos pouco expressivos, por outro há algumas tentativas de traduzir visualmente a dualidade de Fernando. São estratégias com certa eficiência para articular a linguagem a favor da história, principalmente o ritmo dinâmico dos diálogos e da montagem. Em outros casos, fica uma sensação mais contraditória no uso das demais técnicas, como a inserção de letreiros no centro da tela, divisão da tela através do split screen e canções como comentários das vidas secretas do personagem – podem parecer soluções visuais para a ideia da obra, mas também soam como recursos pontuais empregados apenas para evitar críticas negativas sobre uma direção que simplesmente ilustraria o texto (no geral, falta ao diretor definir seu próprio olhar sobre a trama contada).

Marcos Carnevale se aproxima mais de uma perspectiva própria quando reorienta o estilo e o ponto de vista do enredo. Embora o incidente que marque essa reorientação seja uma apressada resolução de conflito, a mudança causa um impacto relativamente positivo. No segundo ato, Paula e Vera ganham o primeiro plano a partir do momento em que descobrem serem casadas com o mesmo homem, uma reviravolta no tipo de comédia construído. Aquela forma de humor baseada em erros, acidentes e mentiras é substituída por uma trama de vingança que não pode ser levada a sério, pois as duas mulheres começam com pequenas revanches e avançam para uma decisão extrema, que não assume uma possível abordagem dramática pautada na discussão sobre o sexismo na sociedade por preferir um tom leve.

Apesar de não ser totalmente inovadora, a reviravolta surpreende por sua chegada inesperada e por seu encaixe na premissa. Provavelmente, é o trabalho com o efeito surpresa que mais provoca algum efeito no espectador porque a construção estética é tímida ou mal dosada. Em teoria, a execução do plano de vingança precisaria da montagem paralela para acentuar a combinação entre humor e mistério, mas falta potência no encadeamento dos planos; bem como o uso do slow motion precisaria de uma recorrência maior para não parecer um recurso inconstante. Quando a timidez é superada, o equilíbrio nem sempre é atingido, especialmente o caráter novelesco dos acontecimentos e das atuações de Adrián Suar, Gabriela Toscano e Soledad Villamil no trio principal.

Do mesmo modo que Fernando está em constante transformação entre Mar del Plata e Buenos Aires, “Muito amor pra dar” não se satisfaz com uma mudança somente. No terceiro ato, o ponto de vista retorna para o protagonista e o estilo se torna um drama com pretensões edificantes, usando novamente a narração em voice over como uma estratégia preguiçosa de humanização do personagem. A terceira abordagem do filme contraria definitivamente a possibilidade de utilizar a ideia de transformação da narrativa como uma virtude, já que o centro da história inevitavelmente acaba voltando a ser o protagonista. Com isso, os elementos mais problemáticos desaparecem por instantes, mas logo retornam para frustração geral.