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“NÃO! NÃO OLHE!” – O olho nos céus

Um retrato, ouvimos quando crianças, suga a alma. A lenda urbana, misturada com certo misticismo, tão velha quanto a mais antiga câmera, é prova de um estranhamento ontológico que acompanha a fotografia ao longo da história. Os créditos iniciais de NÃO! NÃO OLHE! terminam com a imagem da chapa 626 do célebre experimento de Eadweard Muybridge, que capturara um jóquei, montado em seu cavalo, em movimento – para muitos, o berço do cinema. O anúncio é claro: no fundo, presenciaremos um filme sobre filmes.

(© Universal Pictures / Divulgação)

Longe da obviedade metalinguística, entretanto, o que se segue no terceiro longa de Jordan Peele é uma enigmática miscelânea de gêneros, tomada de símbolos recorrentes e de fortes arquétipos. Estamos em no rancho dos Haywood. São descendentes diretos do jóquei negro que cavalgava no experimento de Muybridge, cujo nome fora esquecido pela história, sua alma sugada pelo zoopraxiscópio. Ali, em algum lugar próximo a Los Angeles, criam e treinam cavalos para produções Hollywoodianas. OJ (Daniel Kaluuya) e Em (Keke Palmer) aprenderam o ofício com o pai, e herdaram o rancho após sua trágica e inexplicável morte: o olho perfurado por uma moeda que, em meio a um estranho vendaval, caíra misteriosamente dos céus junto de outros pequenos objetos. Certa noite, quando retornam as nuvens sombrias e os sons irreconhecíveis, OJ vê nos céus um vulto: algo assombra o rancho dos Haywood.

Peele está em diálogo aberto com dois grandes gêneros americanos em “Não! Não Olhe!”: o western e o sci-fi, o primeiro um dos grandes exercícios da história do cinema com relação a formação de identidade, o segundo o maior representante cinematográfico do espetáculo e do maravilhamento. Em muitos sentidos, seu filme trata do embate entre essas duas forças: a do indivíduo e a do espetáculo – em especial, que muitas vezes o primeiro é sacrificado em nome do segundo. Para onde se olhe em Não! Não Olhe! se verá as figuras abandonadas pelos filmes passados, pela indústria, pelos grandes nomes: os animais (os cavalos do rancho, o macaco no estúdio, o louva-deus que bloqueia a câmera), que eram pretexto para a formação dos laços humanos amistosos no incrível “Hatari!”, aqui são parte da força de resistência, se recusam a serem usados (“animais treinados são imprevisíveis”, dizem em certo momento), pelo filme ou pelas personagens; os rostos e corpos negros, relegados a meros estereótipos por décadas em Hollywood, aqui tomam o lugar dos heróis clássicos, do cowboy que cavalga rumo ao perigo e o derrota; os obreiros técnicos, rigorosos e obsessivos, que a indústria enterra nos créditos ou troca por “profissionais”, retomam seu protagonismo.

A descoberta (a descoberta efetiva, a criação, a elevação) de Kaluuya é um dos grandes méritos da carreira de Peele até aqui. Ele é um dos poucos diretores em atividade hoje e com alcance no cenário mainstream que tem olhos e ouvidos para atores nascidos para a tela (a voz do Holst de Michael Wincott em “Não! Não Olhe!” é uma experiência à parte), tal qual faziam Cukor, ou Capra, e outros grandes realizadores da era dourada do cinema hollywoodiano. O semblante melancólico de Kaluuya resguarda o passado inteiro, a história de todos os Haywood. O cabisbaixo da timidez e do pé atrás é seu modus operandi, lhe foi imposto pelas conjecturas sociais e culturais que o assombram. Quando descobre que o ato de olhar para baixo – um ato anti-Spielbergiano – é sua maior arma, está em casa, é quem o faz melhor: não dá a satisfação de retribuir o olhar a quem quer ver sem ser visto.

A coisa que atravessa os céus acima do rancho, descobrimos, não é uma nave, mas um só ser vivo, oval e com uma cavidade escura no centro, perfeitamente redonda – é um olho, uma lente, que busca incessantemente por espectadores. Quando os encontra, abre a cavidade e se alimenta dos humanos insignificantes, os suga, passam aos berros desesperados pelos espaços estreitos daquele organismo, são alimento no estômago. O monstro, o não identificado, o estranho: é o próprio cinema. Quando revela sua forma plena no terceiro ato, sai da cavidade um vívido cubo, que se abre em camadas. É onde vimos, nos créditos, a imagem do jóquei, e é impossível não ver nela uma câmera-escura.

OJ e Em querem capturar a imagem do ser nos céus. Querem captura-la antes de todos – antes dos diretores de renome, dos produtores brancos e endinheirados, dos fotógrafos que nada tem de artistas – para que possam vende-la e receber o retorno financeiro por isso, que por anos e décadas e séculos caiu nas mãos erradas. Holst sabe que a missão é nobre, mas impraticável: o ser nos seus é a própria máquina da captura, e para selar sua imagem é preciso outra igual. Em eventualmente consegue a fotografia que tanto busca, mas para isso usa o aparato fotográfico do parque temático. Holst, antes de se atirar em um ato implosivo criatura adentro, exclama: não merecemos o impossível. Não merecemos ver o que só vê. Não olhem. Olhem para baixo. O ciclo é o que é, da ontologia não se foge. OJ e Em, montados e a postos, não fogem, mas também não olham para baixo. Domam porque veem a criatura que os vê.