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“NÃO SE PREOCUPE, QUERIDA” – Controle, simetria e unidade

* Aviso: é possível que alguns trechos desta crítica contenham spoilers.

Em determinado momento, ouve-se em NÃO SE PREOCUPE, QUERIDA, em voice over, a seguinte frase: “há beleza no controle, há graça na simetria, nos movemos como um só”. Controle, simetria e unidade são os três elementos que constituem a base do longa, o primeiro e o último especialmente no roteiro, o segundo na direção. O thriller psicológico acerta sobretudo na construção da sua metáfora, mas não tem igual êxito na constituição de seu suspense.

Alice tem uma vida tranquila e feliz com Jack, seu marido, em uma comunidade experimental conhecida como “Projeto Vitória”, em que ele trabalha. Depois de um comportamento estranho de uma amiga, Alice começa a ficar preocupada com os segredos que o empreendimento guarda.

(© WARNER BROS. / Divulgação)

Depois do sucesso de “Fora de série”, havia bastante expectativa para o segundo longa de Olivia Wilde na direção, desta vez em um gênero bem diferente. É possível perceber um talento que ainda precisa ser lapidado, mas o trabalho apresentado tem consistência substancial. Abraçando imageticamente a circularidade como símbolo da simetria, a cineasta usa de spinning shots aliados a cortes rápidos capazes de causar vertigem, assim como a repetição da rotina da protagonista, artifício comum no suspense. Por outro lado, a simetria é contraditada pelo espelhamento: surgem superfícies refletoras (vidros, espelhos e plástico) que contradizem (em um bom sentido) o paralelismo ora ao colocar Alice em perigo, ora pela não correspondência entre o real e o reflexo.

Quase como uma distinção entre o mundo numênico e o mundo fenomênico, Wilde coloca o casal principal em dois contextos absolutamente distintos, enaltecendo a simetria e deixando claro que em um deles há algo errado – do contrário, não haveria movimento como um só. A trilha musical é excelente ao inserir músicas de época (um clássico brasileiro, inclusive), modificando o estilo para combinar com o suspense. A época também é traduzida visualmente no ótimo design de produção e nos costumes (enquanto os homens saem para trabalhar, as mulheres ficam em casa, encarregadas das tarefas domésticas). Tudo isso é colocado em xeque quando o roteiro de Katie Silberman, Carey Van Dyke e Shane Van Dyke verbaliza a sua ideia governante, relativa aos perigos do controle.

Há uma crítica ao controle tanto das grandes corporações face às pessoas comuns quanto (principalmente) dos homens em relação às mulheres. Frank surge quase como um vilão responsável pela opressão empresarial contra a sociedade, porém sua unidimensionalidade é prejudicial à narrativa, e a atuação fajuta de Chris Pine (com uma expressão supostamente enigmática petrificada) não é capaz de compensar. A dinâmica do casal principal, quando revelado o mistério da trama, expõe uma disputa comum na qual Alice e Jack são os arquétipos da esposa submissa e do marido provedor, respectivamente. À medida que essa dinâmica se torna mais complexa, o roteiro se apressa em escancarar sua ideia governante, desvelando o véu de um mistério não tão misterioso quanto poderia. Ainda mais grave, o abismo das atuações dos dois ofusca o que deveria ser o principal. Enquanto Florence Pugh transmite em Alice até mesmo um drama ignorado pelo roteiro e pela direção (mais preocupados com o suspense em si), Harry Styles não transmite quase nada. Na cena em que os dois estão dentro do carro, exige-se dele um sofrimento que o cantor simplesmente não consegue expor. Ironicamente, não há unidade.

A concepção de unidade adotada por “Não se preocupe, querida” é a falsa sensação de que a realidade pode ser reduzida a um todo insuscetível de fragmentação ou pontos de vista. Os maridos não querem que as esposas descubram a realidade, por isso o controle se faz necessário. Margaret (Kiki Layne) é a primeira a perceber, enquanto Bunny (vivida pela própria Wilde), Shelley (Gemma Chan) e, claro, Alice (até determinado momento) convivem em uma alienação deliberada e meticulosamente controlada. O longa se equivoca, por exemplo, na brevidade com que questiona as desvantagens do controle e no flerte com o erótico, mas não é esse o seu principal defeito. Seu grande problema está no primeiro ato: de nada adianta uma fotografia esplendorosa o filme todo se os minutos iniciais não criam a atmosfera ideal de suspense. As cenas de subjetividade mental fazem sentido, mas o vazio de sentido da primeira meia hora pode fazer com que a produção perca a sua plateia, que fica alheia a uma desnecessária demora para engrenar. Superada essa meia hora e sem avidez para os plot twists, o público pode encontrar um filme muito bom.