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“NARDJES A.” – O tempo presente que pulsa [9º ODC]

Karim Ainouz foi para a Argélia pela primeira vez em 2019 decidido a fazer um filme autobiográfico, através do qual buscasse as raízes da família paterna. Ao chegar lá, suas intenções são alteradas pelo entusiasmo de presenciar manifestações contra o governo local, fazendo com que seu filme se transforme. De um projeto pessoal mais circunscrito às suas origens, nasce NARDJES A., um registro sobre o poder do coletivo no mundo contemporâneo.

(©Watchmen Productions / Divulgação)

A nova produção acompanha a ativista Nardjes ao longo das 24 horas de um dia em que participa dos protestos contra a possibilidade de um quinto mandato de Abdelaziz Bouteflika na Argélia. Os eventos realizados no Dia Internacional da Mulher projetam lutas para o destino do país, remetendo aos esforços pela independência contra o Imperialismo francês e almejando um futuro democrático para os argelinos. Tudo isso nos coloca dentro do furor das ruas e de seus manifestantes.

O princípio temático e estético de Karim Ainouz já fica demonstrado nas primeiras sequências. Enquanto um letreiro ocupa o centro da tela para contextualizar as lutas sociais desde a independência da Argélia, imagens de arquivo em preto e branco mostram as mobilizações populares de grande intensidade no passado recente. Gradualmente, esse registro avança no tempo, ganha cores e passa a representar novas manifestações, dessa vez atuais e contra o despotismo de um governante há anos no poder ceifando os direitos democráticos e a economia da nação. Trata-se de um recurso dinâmico para a linguagem cinematográfica – é um raccord de transição temporal muito expressivo que revela de forma potente o som daquela aglomeração – e simbólico para exprimir que o interesse do documentário é o povo reunido.

Embora a abertura enfoque a sociedade como um todo, o diretor escolhe a ativista como nosso guia para os fatos do 8 de março de 2019. Desse modo, críticas podem ser feitas quanto a essa decisão de definir uma protagonista e seguir seus passos até chegar aos protestos e, em seguida, ir embora – principalmente porque a trajetória do antes e depois pode parecer vazia se comparada aos momentos marcantes das mobilizações, além de a mulher não soar tão interessante em seus discursos genéricos sobre juventude, força do povo e pautas políticas. Entretanto, pode ser limitador pensar que a narrativa se individualiza e se restringe a ela, pois em diversos instantes o risco de estreitar a perspectiva é resolvido com escolhas formais variadas.

Nardjes até pode se expressar através de narrações em voice over em muitas ocasiões, sugerindo uma leitura personalizada do contexto. Porém, os discursos não se fecham apenas nela mesma, já que englobam o engajamento da sua família nos embates anti-imperialistas contra a França e as contribuições das novas gerações para a redemocratização do país – assim, o caráter coletivo não é esquecido nem mesmo quando jornadas pessoais são abordadas. Já durante as manifestações, por mais que a câmera constantemente enquadre a jovem, logo outros indivíduos ocupam o quadro e possuem seus minutos de destaque (lado a lado com ela ou centralizados sem que a protagonista esteja junto) – portanto, a câmera é atraída por uma gama variada de manifestantes e seus gritos de ordem e passa também a segui-los.

Inegavelmente, quando o cineasta acompanha os protestos de perto mergulhando a câmera nas ruas, o filme adquire uma força magnética. O grande valor do documentário é registrar a capacidade de mobilização dos cidadãos como um organismo vivo, capaz de criar e compartilhar um repertório de ação coletiva: existem muitos gritos de ordem contra o governante e a favor de mudanças; símbolos de exaltação da pátria que desejam, principalmente a bandeira nacional; e uma postura de desobediência civil pacífica mesmos nos momentos em que a repressão tenta desarticular o movimento. A energia pulsante toma conta dos argelinos à medida que o tempo transcorre e mais elementos asseguram sua união, como os sorrisos trocados, o contato corporal de beijos, abraços ou simples toques e  a pausa pontual para uma oração em conjunto.

Para intensificar a sensação de imersão dos espectadores, o diretor leva sua câmera para o meio da multidão e nos convida a sentir como seria fazer parte das manifestações. Além disso, o design sonoro de Sebastian Morsch e Ilyas Mohammed Guetal é essencial para dar vida aos espaços por onde a população se desloca, através da pulsação que ecoa nos cantos e na movimentação dos insurgentes (algo semelhante a torcidas de futebol, mas impregnado de rebeldia, de desabafo e atuação política). A luta se reflete também na forma como os indivíduos ocupam o espaço público, integrando-se aos cenários com a mensagem de que o país pertence a eles e sendo filmados por meio de planos aéreos ou planos conjuntos em que tomam para si as varandas dos prédios, os túneis e os postes das ruas.

Considerando-se o estilo de Karim Ainouz, a ideia de valorizar a energia vibrante da coletividade como força de transformação política se encorpa ainda mais. O diretor capta essas imagens contemporâneas com um smartphone (também muito comum entre pessoas anônimas em qualquer aglomeração), próprio da era do instantâneo. Com grande velocidade, é possível registrar cada novo acontecimento da vida pública de uma sociedade; com igual rapidez, os contextos se transformam do bem para o mal apontando novas necessidades e desafios. Ainda assim, o tempo presente na Argélia chegou a uma pulsão tão intensa que não é mais possível  supor que o povo se desmobilize – uma mensagem que, inclusive, pode ultrapassar fronteiras e se comunicar com o Brasil atual.      

* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).