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“NASCIDO EM 4 DE JULHO” – Lugar de fala

Na teoria, há quem enxergue algo belo nas guerras. É um momento em que as pessoas são chamadas para defender o seu patriotismo contra um inimigo, defendendo a sua bandeira até a morte, se necessário. Na prática, o sangue derramado é de pessoas que muitas vezes sequer estão envolvidas no conflito. NASCIDO EM 4 DE JULHO é um contundente manifesto contra a visão romântica da luta armada.

Desde criança, Ron Kovic tem um encanto pelo universo bélico. Quando jovem, sente-se destinado a dar o sangue pelo país que tanto ama. A data de seu nascimento (4 de julho, quando é comemorada a independência dos EUA) é apenas um dos aspectos que reforça seu patriotismo intenso. Quando ele se alista e vai ao Vietnã, sua percepção começa a mudar em razão dos fatos com os quais se depara, muitos deles com envolvimento pessoal de Ron.

(© Columbia Pictures do Brasil / Divulgação)

Ninguém melhor para discursar contra a(s) guerra(s) do que alguém que esteve lá e sofreu todos os dramas (e danos) que dela decorrem. Tom Cruise tem em Ron um dos melhores papéis de sua carreira. A atuação do astro é brilhante porque ele compreende bem a razão por que a personagem defende (com tamanho vigor) tudo o que defende. Sentido-se destinado a um futuro grandioso como fuzileiro, Ron se joga no Vietnã como se este fosse uma piscina segura – e não um mar aberto perigosíssimo. O que ele aprende é que, em uma guerra como a do Vietnã, o que mais existe são vítimas. Pior, vítimas não apenas do ponto de vista material, mas vítimas morais de um discurso reducionista e alienante.

Ron personifica os valores dos EUA, na sua época. Na infância, é a estrela do jogo de baseball; quando jovem, declara aos amigos que quer entrar para a História, como a geração anterior fez na Segunda Guerra. Quando luta, ainda em casa, usa um macacão azul (o adversário, preto) porque Ron representa o seu país. É um verdadeiro patriota, apaixonado e até cego no discurso de Kennedy segundo o qual não deve perguntar o que o país pode fazer por ele, mas o que ele pode fazer pelo país. É amar ou deixar a nação, não há meio termo. A roupa confortável (camisa e calça jeans até quase a altura do umbigo) precisa ser abandonada porque o conforto do lar precisa ser abandonado por uma causa maior: a luta contra o comunismo.

É verdade que não há consenso sobre esse confronto. Será mesmo que o comunismo estaria se alastrando pelo mundo? Enquanto o pai de Ron prepara um luto antes da ida do filho, a mãe interpreta o alistamento como o início da missão para a qual ele está destinado. É a vontade de Deus. A moral religiosa é pujante na casa de Ron: ao entrar em casa, o sinal da cruz precisa ser feito; objetos associados ao pecado devem ser defenestrados da residência. Os Kovic não querem enfrentar os trágicos fatos, é melhor assistir a um programa com Sammy David Jr.. Ainda que acompanhassem melhor a triste realidade, não faz diferença: impera uma cultura de banalização da morte (por exemplo, no diálogo de Ron com seu superior após a morte de Wilson). Armas não são ruins: qual o problema de tantas crianças brincando de soldados (Ron ainda criança com seus amigos), de um menino com o boné igual ao de Ron mirando-o durante o desfile (o que lhe causa certo espanto) ou de uma criança com “arminha” de brinquedo? Se existe uma contradição com preceitos religiosos (como “não matarás”), a mãe de Ron, religiosa fervorosa, finge não detectar – aliás, a cena da discussão entre Ron e sua mãe faz com que Cruise e Caroline Kava deixem o espectador assustado, tamanha a energia com que defendem seus pontos de vista.

Responsável pelo roteiro do longa juntamente com o verdadeiro Ron Kovic, Oliver Stone dirige um trabalho fenomenal. A cena em que toca “Moon river” é simplesmente mágica e marca por destoar dos horrores e do gore que Stone não se furta de mostrar. A trilha musical do inigualável John Williams é bem presente, ao passo que o poder do silêncio é usado em momentos-chave (na principal cena da guerra e na cena com a família de Wilson). A montagem é fluida; quando há um corte brusco (dos policiais nas ruas para Ron no bar), é proposital. A fotografia de Robert Richardson dialoga com a marcha narrativa para ampliar a imersão do público: suavemente arenosa no prólogo, como se fosse algo distante; clara na juventude de Ron; e bem avermelhada nas praias do Vietnã. A sensação de secura do local é asfixiante, sobretudo com as imagens chocantes com que Ron se defronta. À beleza das silhuetas dos soldados na contraluz na areia contrapõe-se um cenário lamentável em seu significado.

Stone conduz seu filme com amplo domínio da obra. Por exemplo, na primeira cena que se passa em 1969, há uma elipse (em relação ao que não foi mostrado na cena imediatamente anterior) cujo conteúdo é revelado com um simples movimento de câmera. Para enfatizar o desgaste psicológico do protagonista, elementos físicos se sobressaem, como o corpo magro de Cruise e o cabelo (fios secos, tornando-se cada vez mais escassos e desbotados). O ator não é galã, “Nascido em 4 de julho” não é romance, não há beleza em uma guerra – muito menos na do Vietnã, que foi tardiamente questionada e legou incontáveis danos aos envolvidos. Não são as palavras de quem enxerga os fatos em distante retrospecto, mas de quem participou ativamente do evento, alguém que tem – usando uma expressão bem contemporânea – incomparável lugar de fala.