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“NAVALNY” – Thriller do bem contra o mal

Vladimir Putin é um nome que cerca a história política da Rússia pelo menos desde 1999. O antigo agente da KGB e chefe dos serviços secretos soviético e russo, assumiu o governo após a renúncia de Boris Iéltsin. A partir daí, manobras autoritárias foram feitas para permanecer no poder até hoje, seja como presidente, seja como primeiro-ministro. Ao longo desse período, diversas tensões tomaram conta do país, como as divergências com os EUA e a Europa Ocidental, a rigidez no enfrentamento de rebeldes chechenos, o sufocamento da oposição, as denúncias de violações aos direitos humanos e as polêmicas em torno da Copa do Mundo de 2018. Outra faceta problemática da Rússia contemporânea é retratada pelo documentário NAVALNY, sob a forma de um thriller investigativo.

(© HBO Max / Divulgação)

Alexei Navalny representa mais um aspecto controverso da administração Putin. Ele é um advogado, blogueiro e político russo que faz oposição ao atual governante. Nos vídeos que fez para seu canal do YouTube e nos comícios públicos realizados, Alexei criticou a oposição do governo, colocou-se como alternativa política para o país e insuflou protestos populares. Em 2020, em um voo da Sibéria para Moscou, começou a se sentir mal, desmaiou e entrou em coma. Levado para um hospital, as suspeitas de sua esposa e de sua equipe é de que o opositor havia sido vítima de envenenamento. Ao se recuperar, faz uma investigação para provar o envolvimento de Putin em sua tentativa de assassinato.

Na abertura da obra, Alexei Navalny conversa com o diretor Daniel Roher e pede para que não faça um filme dramático ao estilo in memorian como se antecipasse um destino trágico para o advogado blogueiro. Ao invés dessa opção, o documentarista cria uma narrativa de suspense que projeta os eventos futuros sob uma ótica inquietante e temerosa. Embora o documentário costume tratar a realidade enfocando acontecimentos que já podem ser conhecidos por parte do público, o cineasta consegue encenar este segmento da história contemporânea da Rússia como um mistério repleto de intrigas, reviravoltas e surpresas. Alguns espectadores já podem estar atualizados em relação ao caso, mas podem ser tragados por uma onda de tensão do que está por vir graças às escolhas formais. O primeiro depoimento de Navalny ser sobre os riscos de ser preso ou morto, o início não linear mostrar o receio de retornar ao seu país natal antes de explicar os motivos para tanto temor, a trilha sonora tensa e o intervalo menor entre o tempo dos planos constroem um suspense conspiratório.

O desenvolvimento da narrativa mantém o estilo de um thriller documental que reconstitui fatos recentes sob o viés da tensão quanto ao desconhecimento do que pode ocorrer em seguida. Daniel Roher parece enxergar a realidade como uma instância tomada pela incerteza aflitiva, afinal a retomada da linearidade jornalística destaca o prolongamento da sensação de mistério ameaçador. A apresentação da atuação política de Navalny, a obtenção de apoio popular e a ocasião do envenenamento evocam uma trama de espionagem que provocam dúvidas sobre os desdobramentos da vida do protagonista. Quando os riscos de óbito são descartados, o gênero cinematográfico se transforma em um thriller investigativo que tenta rastrear os detalhes do crime e os envolvidos, inclusive com a entrada de outras pessoas da equipe de Alexei no primeiro plano do filme e o jornalista investigativo Christo Grozev da agência Bellingcat. Muitos são os recursos para aprofundar a sensação de que estamos em uma história de suspense, como letreiros que apontam a proximidade de acontecimentos importantes e o desvio temporário para o debate sobre a questão de os dados virtuais deixados na internet serem pistas que informam tudo sobre seus usuários.

Escolher esta abordagem implica em resultados díspares para a produção. Ao mesmo tempo que o documentário reconstrói momentos do passado recente sob uma perspectiva artística, libera também uma descarga de tensão que envolve o espectador a partir da percepção da radicalização da política contemporânea. Por um lado, a decisão estilística de combinar uma narrativa documental com a construção típica de um thriller sugere que os conflitos políticos da atualidade alcançaram uma radicalidade evidenciado na figura de Vladimir Putin e nos perigos do uso indiscriminado das mídias digitais – as sequências em que Christo Grozev explica sua investigação digital e a polícia reprime os manifestantes pró-Navalny são bons exemplos. Por outro lado, o tom de suspense também é dado pela caracterização do protagonista que beira a idealização ao conferir a ele uma dimensão quase heróica ou, no mínimo, supervalorizada – no trecho do filme em que ele está em coma, a câmera mostra o cenário vazio em que as entrevistas diretas eram feitas, até que o despertar no hospital é seguido pelo seu retorno à locação filmado praticamente como uma apoteose celebrativa.

Por conseguinte, a idealização do principal personagem direciona o thriller para um lugar que abre brechas problemáticas de leitura e assimilação: a diferenciação de Navalny e Putin em termos maniqueístas. Não se trata de tornar este texto um veículo de relativização do autoritarismo de Putin, mas de pensar as críticas ao atual presidente russo e conceber formas de oposição sem ingenuidade ou personalismos despolitizados. É válido e necessário expor através de registros visuais os desmandos do governante através da força policial repressiva, das restrições à liberdade de expressão e à postura de não se referir ao nome de seu opositor. Entretanto, o cineasta cai na armadilha de deixar sua narrativa refém de Navalny, chegando inclusive a dar espaço para discursos messiânicos e pretensiosos sem fazer a devida crítica. Logo, o filme parece dar sustentação às falas de Navalny se colocando como um símbolo de bondade na cruzada contra a maldade enraizada em seu país. A ligação do opositor ao nacionalismo exacerbado, a participação em um evento de extrema direita no passado e a disposição a dialogar com grupos nazistas são rapidamente citadas sem explorá-las como um conjunto de contradições que faria o personagem ser mais real e não apenas dotado de virtudes irrepreensíveis a serem admiradas.

A maneira como Daniel Roher posiciona sua câmera e segue os acontecimentos pode explicar esta brecha duvidosa que se abre nas escolhas estilísticas. Além de criar planos médios e fixos no local onde o diretor reúne relatos de Navalny com enquadramentos que o valorizam, a câmera ganha vida própria ao perseguir os personagens para onde quer que se desloquem. Como consequência, o filme estabelece um vínculo emocional com aquelas figuras, ocupando a mesma perspectiva e se importando com seus destinos, e também leva o público a participar indiretamente da investigação (algo que atinge o auge quando ligações telefônicas para suspeitos de participarem do crime são feitas e o processo toma um rumo inesperado após uma das chamadas). Tal decupagem acaba por reforçar a posição idealizada de Navalny como um símbolo perfeito da liberdade desejada pela população, deixando assim de valorizar as outras composições imagéticas trabalhadas pela narrativa. Isso porque o documentarista aproveita de forma tímida as diferentes texturas visuais de registros de programas de TV, câmeras de segurança e celulares de pessoas comuns.

Considerando-se o contexto de lançamento da obra, “Navalny” ainda passa por uma ressignificação curiosa. Após a conclusão das filmagens, a invasão russa à Ucrânia proporcionou mais um aspecto de intransigência, violência e autoritarismo para o governo Putin. Em 2017, o cinema já havia utilizado o documentário para abordar as perseguições sofridas pela oposição na Rússia em “Icarus“. Então, matéria-prima para dar conta de denúncias, críticas ou representação de uma parte do cenário contemporâneo não falta, inclusive possibilitando abordagens variadas. E a produção de Daniel Roher faz isso ao criar um thriller documental que se aproveita da manipulação da tensão para garantir o interesse do público nos eventos subsequentes. No entanto, a dimensão maniqueísta do suspense que pode caber em filmes de ficção se torna uma simplificação imprudente da política.