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“NOITES ALIENÍGENAS” – Conceito como potencial e limitação

Na varanda de uma casa, Alê e Rivelino conversam sobre múltiplas possibilidades no universo, mundos variados dentro uns dos outros, realidades alheias a uma dimensão racional mais simples e identidades heterogêneas dentro do próprio eu. Na verdade, Alê é quem mais fala e sintetiza seus pensamentos com a ideia de que alienígenas podem existir e já terem interferido na existência humana. Em uma perspectiva imediatista, poderia se fazer um esforço para assimilar a cena em uma chave literal. Entretanto, NOITES ALIENÍGENAS utiliza os seres do espaço como parte de seu título e como conceito que pode oferecer tanto oportunidades artísticas expressivas quanto restringir a força de sua criação.

(@ Vitrine Filmes / Divulgação)

As noites que formam a outra parte do título do filme são aquelas que vêm de Rio Branco no Acre. Na capital acreana, Rivelino, Sandra e Paulo são três amigos de infância que cresceram na periferia e se reencontraram tempos depois. O primeiro entrou para o tráfico de drogas, a segunda teve um filho de Paulo e trabalha como garçonete com o sonho de fazer medicina e o terceiro não consegue se livrar do vício nas drogas. Os três personagens vivenciam cada um à sua maneira o lado urbano da Amazônia, impactada pela chegada de facções criminosas do Sudeste e vista pela lente do realismo fantástico.

Em um trecho da fala de Alê na sequência inicial, ele comenta sobre a existência de pirâmides semelhantes na América e na África e como o fato poderia ser indício de forças alienígenas em ação entrelaçando lugares distintos. Então, a primeira referência aos extraterrestres vem no conceito de interligação do diferente e compõe o mosaico de personagens que forma a trama. Alê é um traficante de drogas em conflito com um grupo rival que se intitula Família; Rivelino trabalha para ele, apesar dos desentendimentos quanto à forma de lidar com os compradores; Beatriz é a mãe de Rivelino e uma mulher preocupada com o futuro do filho e também disposta a desfrutar da vida; Sandra é a namorada de Rivelino e uma jovem dedicada ao sonho de cursar medicina, ainda que precise fazer alguns sacrifícios; e Paulo é um jovem de origem indígena que tenta constantemente arrumar dinheiro para se drogar, embora tenha o dever de ser pai do filho que teve com Sandra. Algumas figuras secundárias orbitam esses personagens centrais em uma narrativa coral que cai no risco de deixar alguns núcleos mais atraentes do que outros.

Comparativamente, os segmentos de Alê e Rivelino são os que mais se sobressaem. Parte disso se deve ao trabalho de atuação, respectivamente, de Chico Díaz e Gabriel Knoxx. O primeiro confere uma dose complexa de humanidade ao traficante que se interessa por assuntos filosóficos e artes e enxerga o tráfico sob um viés idealizado sem uma ambição violenta. Já o segundo evidencia a desorientação de um jovem de 17 anos que não consegue discernir tanta perspectiva para o futuro, carecendo de uma figura paterna, tendo atritos com a postura livre da mãe e concebendo o crime como única via possível para sua vida. Sob outro ângulo, o diretor Sérgio de Carvalho também contribui para a importância dos dois personagens ao fazer do olhar de ambos uma porta de entrada para o contexto urbano da Amazônia presente no Acre. Inicialmente, os enquadramentos se fecham um pouco mais nos dois indivíduos e pouco registram do ambiente ao redor. Com o tempo, a câmera amplia o campo de visão e desbrava vários espaços de Rio Branco enquanto segue principalmente Rivelino, como as casas modestas da região, as áreas insalubres onde estão os dependentes químicos e o campo onde meninos soltam pipas.

A expansão do olhar do público vai além da geografia urbana da capital, pois contempla também a diversidade cultural de um país multifacetado. Além de um mosaico rico de personagens, há uma gama diversa de manifestações artísticas e religiosas. É possível observar as pinturas feitas por Rivelino na casa de Alê, os grafites e as pichações nas paredes das ruas, os embates de rimas de funk, as missas cristãs frequentadas pela mãe de Paulo, as crenças ancestrais de povos indígenas da família de Paulo e as religiões de matriz africana. Por consequência, o recorte social da cidade é amplo e engloba diferentes matizes de identidade, passando por origens étnicas (africanas e indígenas) e questões de gênero (uma personagem se reconhece como travesti). Nesse ponto, o conceito de alienígena pode ser ressignificado para dar conta da marginalização sofrida por grupos fora das classes dominantes e hegemônicas, afinal podem se sentir como alienígenas em seu próprio país. Porém, Sérgio de Carvalho não consegue escapar da armadilha de tornar essas culturas e identidades praticamente alienígenas dentro da narrativa porque ocupam uma posição tímida na qual pouco participam da trama.

Sendo assim, em muitos momentos, a obra se limita a registrar e a documentar a diversidade cultural e identitária do Brasil a partir do Acre. Dessa maneira, o cineasta considera suficiente mostrar e observar personagens tão plurais como se o reconhecimento de suas existências já fossem importantes para a construção cinematográfica. E a incorporação do mosaico de culturas e identidades à forma fílmica e às escolhas formais de desenvolvimento da trama? É possível notar a falta de um trabalho estilístico que faça o esforço temático de radiografar a contemporaneidade ser enfatizado por uma narrativa que vai além do roteiro. Percebe-se essa lacuna na montagem de todos os núcleos, pois alguns deles são negligenciados e outros são subaproveitados. Por exemplo, a infância em comum de Rivelino, Sandra e Paulo é pouco sentida nos conflitos dramáticos, o arco de Sandra é esquecido sem um encaminhamento claro e as tradições religiosas africanas e indígenas são trabalhadas pontualmente.

Mesmo que a riqueza desse mosaico não seja tratada por completo, o conceito de alienígena ainda explora outras possibilidades. As convenções do cinema de ficção científica consagraram a ideia da invasão de extraterrestres ao planeta. No filme em questão, os invasores são as facções criminosas originárias da região Sudeste que disputam territórios para vender drogas e o local invadido é a região Norte. Essa leitura é feita a partir de uma abordagem naturalista, capaz de apresentar os efeitos destrutivos do tráfico em ambientes degradados. Em outra chave, o mesmo conceito recebe outros sentidos dentro da abordagem de um realismo fantástico. Nas sequências noturnas, a fotografia ganha contornos oníricos, a arquitetura de uma construção da cidade se assemelha a uma nave espacial e a iluminação de faróis dos veículos evocam alguma experiência extrassensorial. E esta experiência ocorre, de fato, no auge das tensões para Alê, Rivelino e Paulo.

Os alienígenas podem também remeter às práticas de grupos que não pertencem à cultura europeia hegemônica nem ao pensamento racional e científico. Nesse sentido, o clímax com Alê, Rivelino e Paulo é construído com uma montagem em paralelo que abraça a sugestão da fantasia ao colocar no centro dos acontecimentos um ritual ancestral proveniente das tradições dos povos originários. Na sequência final, “Noites alienígenas” cria um paralelismo entre a música cantada por Alê na abertura e a outra canção ouvida por ele e Beatriz no desfecho. A ideia é forte por contrapor a tese do entrelaçamento dos diferentes ao sentimento da solidão trágica ao redor do conceito de alienígena, mas alguns trechos do caminho até a conclusão são limitados a um nível abaixo das possibilidades narrativas, dramáticas e culturais.