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“NOSSO SONHO” – Menos Buchecha e Claudino, mais Claudinho & Buchecha

O título de NOSSO SONHO não corresponde ao conteúdo do filme. Anunciado como a cinebiografia da dupla “Claudinho & Buchecha”, o longa na realidade mostra como Claudinho mudou a vida de Buchecha, insistindo em uma história de perdão. Isso é positivo porque foge do engessamento de muitos filmes sobre artistas ou bandas, mas desvia bastante do que deveria ser principal.

Os amigos de infância Cláudio e Claucirlei (também conhecido como Beto, ou Buchecha, muito tempo depois) não sabiam, mas uma separação precoce seria temporária. Anos depois de Claudinho se mudar, os dois se reencontram no Morro do Salgueiro, onde Beto passará a morar. É o começo de uma dupla de funk de muito sucesso e de uma união fraterna sem igual.

(© Manequim Filmes / Divulgação)

Ainda que o nome de Buchecha não esteja entre os dos principais envolvidos no filme (roteiro, direção, produção), a obra de Eduardo Albergaria é bastante benevolente com a dupla principal, evitando maiores controvérsias e dando ares angelicais a um deles. Nesse sentido, o roteiro, escrito por Albergaria, Daniel Dias, Mauricio Lissovsky e Fernando Velasco, elege um vilão bastante claro e unidimensional, e é algumas vezes a partir dele (e não da dupla enquanto artistas) que a trama se movimenta. Nando Cunha acerta ao dosar a atuação no papel do pai de Buchecha: Claudino é um homem amargurado, ébrio habitual, por vezes violento, mas apaixonado por música. O primeiro problema é que a fonte dessa amargura jamais fica clara: seria o vício no álcool? Seria uma frustração por não conseguir ser artista profissional? O segundo problema é que o espaço dado a ele é, a depender do ponto de vista, desmedido.

De um lado, o pai de Buchecha é a força negativa que luta contra a força positiva – representada por Claudinho – que leva o jovem ao seu arco narrativo de aprendizagem. Enquanto Claudino decepcionava o filho, o amigo o estimulava a ser compassivo. A ideia governante do filme, portanto, é uma defesa do perdão e das segundas (terceiras, quartas…) chances. Por outro lado, isso faz com que fique negligenciada, em parte, a fama da dupla e até mesmo sua amizade. É com isso que surgem lacunas graves do roteiro: são poucas cenas mostrando como era o processo de composição das canções, o movimento principal de dança não é explicado (outros o são) e o final apressado faz com que o lapso entre o jantar e a última apresentação fique enevoado. Eles teriam brigado pelo que ocorreu no jantar? Houve algo além nesse interregno?

A opção por um narrador parcial se revela, porém, coerente com a proposta. Buchecha, bem interpretado por Juan Paiva, começa esclarecendo: “minha história com Claudinho”. (O que ele não falou é que a história era pelo menos de um trio.) Isso é importante porque mostra que o longa parte de um ponto de vista específico, corroborando a aura angelical com que Claudinho é enxergado por Buchecha. Para além da religiosidade latente do primeiro, o segundo o chama de anjo na narração e lhe atribui certos poderes premonitórios. Apesar do espaço amplamente maior dado a Buchecha, que é uma personagem com mais camadas, é o Claudinho de Lucas ‘Koka’ Penteado quem rouba a cena. Pouco se sabe sobre ele para além de ser brincalhão, empolgado e ambicioso, mas isso basta para que Penteado encante e divirta com uma interpretação ótima. O roteiro acerta ainda em sua linguagem, seja pelo uso de termos em sentido peculiar (“faixa”), seja pela própria informalidade (“na hora ‘H’ eu senti a responsa”). Há, porém, uma ideia repetida ao menos três vezes que é bastante problemática para ser empregada quase como um mantra: “quem tem talento, não tem patrão”.

Na mise en scène, é bom o uso dos cenários pelo diretor. Quando Cláudio e Beto eram crianças, o design de produção era mais singelo (varais com roupas, lago); quando jovens, compartilham espaços na diversão (bailes funk) e no transporte (ônibus). Albergaria não se furta de clichês como o plano diagonal com o rosto na janela do ônibus e imagens de arquivo, mas alguns simbolismos são interessantes, como o carrinho de Claudinho e a televisão demonstrando a passagem do tempo. O trabalho do figurino é bom, assim como a montagem. No segundo caso, a repetição do cut to black no início causa estranheza, porém a prevalência de planos longos posteriormente reforça o naturalismo que a obra tenta imprimir na sua forma (já que no conteúdo há um quê de sobrenatural em Claudinho). Ao invés de usar plano-contraplano, a montagem dá preferência a planos longos, ora com a câmera saindo do eixo (Buchecha quando entrega a caneta ao pai), ora se movimentando no próprio eixo (zoom in na gravação no estúdio) ou mesmo com a câmera estática (a conversa no carro).

Formalmente, “Nosso sonho” é um filme bom; casos destoantes como as animações em uma elipse exibindo suas viagens, por exemplo, são raros. No conteúdo, todavia, o arco de perdão Buchecha e Claudino poderia ser reduzido em favor de mais Claudinho & Buchecha. Afinal, a dupla é essa, não?