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“NÚMEROS” – Excelente teatro disfarçado [44 MICSP]

Primeiro. Segunda. Terceiro. Quarta. Quinto. Sexta. Sétimo. Oitava. Nono. Décimo. Grande Zero. Essas são as personagens principais de NÚMEROS, peça adaptada para o cinema que nada mais é que uma alegoria para o sistema político. A ideia é brilhante, mas tem um problema grave do ponto de vista cinematográfico.

Uma realidade distópica, dez pessoas controladas por um governante autoritário cujo poder é justificado por um líder onisciente e onipotente, que chamam de Grande Zero. As pessoas não têm nome, são chamados por números ordinais. Seu cotidiano é limitado a uma rotina prevista no Livro de Regras, que estabelece rígidos procedimentos diários. Em caso de desobediência, existem guardas armados responsáveis por manter a ordem. Para alguns, contudo, questionar e talvez desobedecer às regras pode ser imperioso.

(© 435 Films / Divulgação)

Antes de o filme começar, seu diretor, Oleg Sentsov, faz uma introdução bem relevante, falando diretamente para a câmera. Nas suas palavras, “Números” não é apenas um filme, mas um tipo de manifesto. Acusado de terrorismo ao se opor ao governo russo, Sentsov coordenou a direção, por meio de cartas, enquanto estava preso (isto é, de dentro da cadeia), que foi executada por Akhtem Seitablaev. A ideia da peça é de Sentsov, bem como o roteiro desta e do longa. O que é relevante é perceber o forte viés político da obra, que é uma crítica feroz ao autoritarismo.

Dividido em cinco capítulos, há espaço modesto para o humor. Terceiro tem problemas de memória, Quinto flerta com números diferentes da Sexta (que é a sua parceira de corrida), até mesmo a música para a corrida combina com a comédia (sem contar as poses das personagens)… mas o assunto é bem sério. Tudo começa com os questionamentos: Sétimo (Evhen Chernykov), um dos principais “corredores”, reflete sobre o sentido do campeonato – no que Quarta afirma ser uma reflexão “típica dos ímpares”. Homens são pares; mulheres, ímpares. Na ordem, eles formam uma parceria indissolúvel. Questionar pode ofender o Grande Zero.

Isso tudo até que surge uma brecha no Livro de Regras: a direção da corrida no “procedimento de ingestão de comida” (e também no de água). Mudar é divertido, mas acaba sendo uma porta de entrada para relativizar as regras. É o que Segunda (Irina Mak) faz ao convencer Primeiro (Oleksandr Yarema) a ficar com o novo integrante quando a grade os separa, à noite – ela se beneficia da anomia. Em um regime repressivo, são necessárias regras rígidas, mas sempre existem lacunas. É necessário também segregar a população, literal (como no regime nazista) ou metaforicamente (nos regimes polarizados contemporâneos, polarização presente na sociedade e causada pela política).

A punição também é indispensável em regimes totalitários. Tentar subverter as regras é uma “profanidade”; descumpri-las, motivo para extermínio – se o líder for benevolente, o cárcere pode bastar. Em “Números”, a dominação é do tipo tradicional em termos weberianos: as regras existem e são seguidas “desde os tempos antigos”, é isso que as justifica. A sede de poder, contudo, acomete a vários indivíduos, que querem estabelecer as suas regras. Quinto (Denis Rodnyanskiy) interpreta os questionamentos de Nono (Oleksandr Begma, o melhor do elenco) como uma vontade de poder, não compreendendo que, na verdade, o que este quer é a liberdade no sentido epicurista, ou seja, autodeterminação absoluta. Nono propõe um estado de coisas em que cada um decide o que quer e o que faz; o que ele quer é subverter o totalitarismo.

Com um epílogo brilhante, a ideia já inteligente de Sentsov ganha contornos magníficos. Visualmente, porém, é tudo extremamente modesto: embora os acessórios sirvam minimamente ao seu propósito (as roupas uniformizadas indicando escravização ou encarceramento, o visual e a posição de Zero distinta dos demais), é tudo muito simples em termos cinematográficos, tratando-se, na verdade, de um teatro filmado. Tudo ocorre em um palco, onde os cenários são arrastados e improvisados em cima do cenário principal. Os alimentos não existem no começo, o bebê é um boneco. Para um filme questionador, “Números” deixa a desejar – ou, melhor dizendo, legitima o questionamento – no que se refere ao olhar cinematográfico da produção. Enquanto peça, deve ser maravilhosa. Enquanto filme, não é cinema. Não obstante, a proposta se justifica por levar ao grande público uma reflexão sempre oportuna – ainda que em um (excelente) teatro disfarçado de cinema. Por fim, o diretor tem razão: o conceito de manifesto cabe muito bem.

* Filme assistido durante a cobertura da 44ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.