Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE” – Filme com fôlego

NUNCA, RARAMENTE, ÀS VEZES, SEMPRE é um filme sensível. Não há nenhuma cena visceral ou uma interpretação avassaladora. Pelo contrário, a produção quer conquistar o espectador pelo coração. Isso não significa, todavia, que se trata de uma visão romântica da realidade. Não há praticamente nada de romance e tudo soa como uma dura realidade.

Com dezessete anos, Autumn engravida. Ofendida na escola e pouco acolhida em casa, ela decide praticar um aborto. Sua única aliada é Skylar, sua prima, que também tem pouca experiência de vida. As duas são obrigadas a amadurecer precocemente, percebendo cada vez mais que não podem depender de ninguém além de si mesmas.

(© PASTEL / Divulgação)

Autumn é uma garota marginalizada, para dizer o mínimo. O imitador de Elvis encanta a plateia, ao passo que sua versão de “He’s got the power!”, de The Exciters, não tem a mesma recepção calorosa. O poder, de fato, é dele, seja ele quem for. Pode ser até mesmo o galo contra quem a protagonista joga, não importa. Autumn ouve ofensas na escola, no restaurante e em casa. Na escola, a opção é ignorar e continuar cantando; no restaurante, o garoto não pode ficar impune; em casa, o pai deixa uma brecha interpretativa ao se referir à cachorra de estimação da família, mas é bastante claro no desgosto com o qual trata a filha. Se elogiá-la parece um esforço hercúleo, ele opta por indiretas.

As figuras masculinas criadas por Eliza Hittman são patéticas. Autumn é tratada mal pelo pai, o chefe não a dispensa sequer por motivo de saúde e o rapaz que se interessa por Skylar (Talia Ryder) é gentil (ou seja, talvez exista uma esperança), mas deixa evidente que não é puramente altruísta (ele precisa de uma recompensa da garota). Apesar de ser prima de Autumn e ter aproximadamente a mesma idade, Skylar assume uma posição materna. Em certa medida, é ela que toma as rédeas da situação em seu momento mais crítico – ainda que seja a protagonista quem tenha de ser mais forte. Simbolicamente, as garotas se fortalecem quando alguém segura suas mãos, um elo de sororidade que encontram uma com a outra e com as mulheres que as ajudam na empreitada.

Tentando não romantizar a feminilidade, nem todas as mulheres dão as mãos para a dupla. A mãe de Autumn parece subjugada pelo marido; Beth, a primeira a atender Autumn, quer impor o seu ponto de vista. Quando Skylar é simpática ao atender um homem no trabalho, ele interpreta como um interesse a mais; quando as duas estão procurando um descanso no metrô, um homem atua como predador sexual. Contudo, há mulheres que, como Beth, ignorando ou reconhecendo a árdua condição feminina, entendem o parto como um valor maior. Uma mãe que carrega o filho recém-nascido pode esquecer o desgosto da gravidez indesejada, outra opção é a adoção, não há dúvida. Mas para Autumn não há o que ser discutido, os desenhos infantis na clínica não a comovem, o ultrassom com o “som mágico”, tampouco (não por outra razão, ela vira o rosto, para nem ver o feto). Ela está interessada em piercing e sua música, certamente em muitas outras coisas, mas não em ser mãe, ao menos não neste momento.

O filme evidentemente levanta uma bandeira, evidenciando que ser mulher pode ser desagradável e desconfortável (o que torna o cenário ainda pior para ser mãe). Ao invés de adentrar em questões éticas complexas sobre o feto, Hittman coloca seu filme, de quem é diretora e roteirista, preocupado com um momento bem anterior, aquele logo após ao conhecimento da gravidez, nas primeiras semanas. São muitas as dificuldades como dinheiro e vergonha (quando Autumn conta para Skylar, existe um obstáculo, literalmente, entre elas). Sem amparo, elas se jogam nas ruas de Nova Iorque, enfrentando o frio – o figurino de quando chegam ao estado visivelmente destoa do vestuário usado na Pensilvânia – e precisando carregar uma mala antiga e pesada.

Ainda que se possa questionar a necessidade da mala (se elas não trocam de roupa, para que uma mala tão grande?), o objeto representa a carga de valores conservadores e pesadíssimos que elas, com esforço e causando incômodo até mesmo no espectador, carregam. Aliás, o longa quer incomodar ao invés de chocar. Em momentos oportunos, a mixagem aumenta os sons diegéticos e os mescla com a música intradiegética – a extradiegética é etérea e delicada, talvez não a melhor opção -; como resultado, público e Autumn se sentem mal (o mesmo ocorre na cena dos socos, sem música, que igualmente causa aflição).

Na punch scene, Sidney Flanigan entrega o único momento realmente bom (mas não excelente) da sua atuação: Autumn é filmada em close, a transição de sentimentos para explicar o título do filme é palpável e sensibiliza com facilidade. Não se trata de uma obra narrativa e nem chega a ser um estudo de personagem, mas um recorte de uma situação muitas vezes ignorada. Percebe-se a fuga do sedutor sensacionalismo, com um cuidado tão grande que reduz em demasia as emoções. A prevalência da sutileza, assim, empalidece um contexto que na realidade pode ser muito mais comovente. A expectativa é de uma cena esmagadora, porém isso não ocorre. É tudo sereno demais, sem saltos, com fôlego demais.