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“O ASSASSINO DE VALHALLA” – No mundo gelado do isolamento

Os oito episódios de O ASSASSINO DE VALHALLA não são fáceis de assistir nem a experiência audiovisual de acompanhar os protagonistas Kata e Arnar agradável de acompanhar. Por essas razões, mesmo soando contraditório, a série islandesa disponibilizada pela Netflix oferece muitas virtudes, ao entregar uma trama policial que se desdobra para um drama sobre isolamento em múltiplas acepções. Isolamento no sentido climático da região nórdica, espacial em termos de contato entre alguns personagens e, principalmente, emocional quanto ao desprezo pela civilidade.

(© Netflix / Divulgação)

Inicialmente, trata-se exclusivamente de uma investigação sobre assassinatos aparentemente sem ligação, que desafiam a polícia da Islândia e a investigadora Kata. À medida que o tempo indica a existência de um serial killer por trás dos crimes, as autoridades islandesas chamam a ajuda do policial Arnar, que volta à sua cidade natal ainda lidando com traumas do passado. A partir daí, os detetives começam a estabelecer uma relação entre as mortes e o reformatório infantil abandonado chamado Valhalla.      

Por si só, os homicídios já são chocantes pela brutalidade com que acontecem, porém também são uma porta de entrada para outras atrocidades. De um lado, as ações do assassino revelam o extravasamento passional de quem, além de matar suas vítimas, pretende fazê-las sofrer; por outro, demonstram como elas se originaram dos obscuros e cruéis segredos entre as paredes de Valhalla. O desenrolar da investigação assinala que os assassinatos não são o único horror existente naquele país, já que a casa de meninos abrigou outras formas de violência que extrapolaram o período em que funcionou e são abafadas por sujeitos detentores do poder. A crueldade direcionada a pessoas tão novas transmite o maior dos isolamentos referidos pela narrativa: aquele que se relaciona à consideração, à empatia pelo outro.

É curioso perceber que desde o primeiro capítulo, a produção já apontava o tom indigesto da história através de pistas, que mais tarde, ofereceriam recompensas a quem as identificasse. O roteiro prepara a caracterização do universo diegético através de elementos reveladores dos sentimentos que os espectadores poderão nutrir: repulsa diante dos acontecimentos e a indignação frente à negligência ou incompetência de autoridades. Precocemente, nos deparamos com comportamentos grosseiros da primeira vítima, a náusea de uma mulher interrogada (que vomita em Kata), o entorpecimento de outra personagem sob efeito de drogas e álcool e diálogos sugestivos da interferência da política nas investigações (a insinuação de que Kata não foi promovida por esse motivo e reclamações da inoperância da polícia em descobrir crimes antigos) – assim, a série constrói uma narrativa sofistica que se molda a partir da união gradual de dados informados dispostos por toda a temporada.

Outros significados possíveis para o distanciamento tão enunciado pela obra vêm das subtramas familiares envolvendo os protagonistas. Cada um à sua maneira, os dois policiais principais se desenvolvem para mostrar os malefícios de se isolar física e emocionalmente de crianças e jovens: Arna é taciturno, robótico, nada interessado em falar sobre sua vida pessoal marcada por uma infância abusiva provocada pelo pai e dedicada a ajudar o filho de uma das vítimas a superar o descaso da própria família; já Kata se questiona acerca da melhor forma de lidar com o filho, aparentemente envolvido com más companhias, enquanto acaba priorizando o trabalho e deixando o rapaz alheio à sua companhia.  Apesar de tais arcos se relacionarem ao conflito central, nem sempre se desenvolvem satisfatoriamente como narrativas autônomas, como é o caso da abordagem superficial da relação entre Arna e os familiares.   

Ainda se pode notar que o afastamento se materializa no própria ambiente onde as mortes acontecem e os policiais correm atrás do responsável. Por se tratar de uma área de clima tão extremo, as condições ambientais parecem retratar a melancolia e o pessimismo resultantes do convívio impessoal ou atroz entre os personagens em boa parte do tempo – características reforçadas pela atmosfera gélida e sem vida da paleta de cores em tons pasteis ou iluminação azulada, bem como pelos muitos planos da nevasca no cenário. Além disso, os personagens tem poucos momentos de alívio, uma vez que são constantemente enquadrados de longe em planos gerais que oprimem suas presenças diante da grandiosidade da locação (Kata e Arna parecem desfrutar de algum descanso emocional apenas quando praticam atividades físicas, cenas em que a fotografia ganha cores mais vibrantes).

Seria igualmente possível pensar o isolamento pelo modo como a investigação se desenvolve, apartando os policiais dos demais indivíduos. Essa separação espacial se traduz nas inúmeras sequências em que trabalham sem nenhuma glamourização ou encanto idealizado, precisando avançar nas averiguações lentamente: o trabalho é extenuante, horas são gastas lendo um vasto material, tentativas de rastrear pessoas desaparecidas nem sempre são frutíferas, linhas de pesquisa podem não ser promissoras e grandes mudanças no caso podem fazer toda a tarefa anterior ser perdida. Mesmo que existam momentos em que eles vão a campo (cenas de ação tensas por precisarem entrar em lugares desconhecidos e escuros à procura de pistas ou suspeitos), o que predomina são passagens vagarosas em que o plano se estende mostrando atitudes comuns (como dirigir por longas estradas).

A ambientação de “O assassino de Valhalla” pode ser um dos primeiros atrativos para chamar a atenção, especialmente por apresentar claramente o estilo cadenciado, de construção meticulosa e de trama angustiante sem ser apelativa (a força das emoções vem muito mais pelos significados das imagens e das revelações do que por artifícios fáceis da trilha sonora, por exemplo). Porém, o criador Thordur Palsson também se esforça em ir além dos elementos esperados dentro do gênero policial e entrega um desenvolvimento dramático tão importante quanto à solução dos crimes. Isso porque o isolamento emocional e a falta de empatia pelo outro podem desencadear a atmosfera propícia para a violência, o ódio e a repugnância.