Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“O CÉU DA MEIA-NOITE” – Tentativa de um esteticismo sentimental

A expressão “arte pela arte” é utilizada para caracterizar obras artísticas que priorizam o valor estético em si mesmo, deixando em segundo plano conteúdos morais, utilitários e sentimentais. Em tese, o novo filme original Netflix O CÉU DA MEIA NOITE escolhe a abordagem visual de produções distópicas e passadas no espaço como seu centro criativo. Contudo, à medida que a narrativa se desenrola, a estética pretendida não se efetiva como experiência total e a ainda invoca emoções abruptas desconectadas de sua construção.

(© Netflix / Divulgação)

Na trama dividida em dois núcleos, vemos os desdobramentos de uma catástrofe mundial na Terra. Em um deles, Augustine é um solitário cientista no Ártico que se recusou a partir com o resto da humanidade para abrigos temporários, pois ainda tenta entrar em contato com uma tripulação em busca da possibilidade de vida fora do planeta. Em outro, a missão espacial da qual Sully faz parte tenta voltar para casa sem suspeitar do que ocorreu durante sua ausência.

Em uma primeira camada imediata, o segmento de Augustine funciona a partir do contraponto entre seu trabalho e sua condição individual: de um lado, tenta cumprir um papel importante na descoberta de um planeta que possa abrigar os seres humanos; de outro, se coloca à margem do convívio social e passa muitos dias sem qualquer vínculo com outras pessoas, apesar de ter uma doença terminal que exigiria acompanhamento médico. No que depende da atuação de George Clooney, a solidão e a desesperança são sensações tangíveis ao longo de uma rotina monótona e de sua atitude corporal abatida. Já no que depende do roteiro de Mark L. Smith (adaptado do livro homônimo de Lily Brooks-Dalton), a ambientação distópica e sua estética correspondente são comprometidas por um arco que se desenvolve de modo genérico, impessoal e sem reflexões sobre o indivíduo isolado em uma situação extrema.

O mesmo George Clooney atua também na direção, sendo curioso ver como ele se sai em um projeto que recorre bastante a efeitos digitais e se distingue do tom de “Boa noite e boa sorte” e “Tudo pelo poder“. Em parte, o realizador cria momentos visualmente arrebatadores sem conjunto com o diretor de fotografia Martin Ruhe e com o trabalho de pós-produção – por exemplo, a cena em que o cientista está mergulhado em uma tempestade de neve e encontra um raio de luz ao longo. Porém, essas construções estética mais poderosas ocorrem apenas pontualmente, cabendo às demais passagens serem simplesmente funcionais (como o design de produção do observatório onde está o protagonista). Além disso, o diretor não consegue integrar os flashbacks da vida do cientista e a aparição da menina Iris na instalação científica à abordagem prioritariamente estética da obra, já que os dois elementos serão usados para uma tentativa de emocionar no clímax.

Quando estamos no núcleo fora da Terra, as percepções de uma falta de engajamento emocional são ainda maiores. Seria coerente escolher uma decupagem impessoal e fria para representar uma trama a respeito da extinção da vida (e consequentemente dos sentimentos) se as situações dramáticas não fossem opostas a essa ideia. Nesse sentido, a encenação distanciada das simulações em que Maya e Mitchell reveem seus entes queridos e o humor vazio das conversas sobre o nome da filha de Sully e Adelowe não contribuem para o envolvimento com os personagens. Assim, o descompasso entre os significados das sequências e o estilo das filmagens prejudicam um elenco interessante, desperdiçando nomes como Felicity Jones, David Oyelowo e Demián Bichir, que têm pouco a fazer.

Da mesma maneira que o arco de Augustine não levanta questões típicas de histórias espaciais, o segmento da equipe é muito tímido em apresentar qualquer reflexão sobre o desconhecido no universo – algo feito por títulos variados como “Solaris” e “2001 – Uma odisseia no espaço“. Seria até possível argumentar que o interesse maior de George Clooney seria propor momentos estilizados, como se nota na criação do design do satélite onde estão por Jim Bissell (a arquitetura do interior parece moléculas de DNA), na fluidez dos movimentos de câmera pelos espaços internos e nas sensações desencadeadas pela trilha sonora de Alexandre Desplat. Entretanto, o que poderia formar uma unidade estilística coerente não escapa de ser apelos estéticos pouco recorrentes, que aparecem isoladamente sem se articularem em um todo coeso e significativo.

Há duas sequências que exemplificam como nem o valor estético em si mesmo se sustenta. As cenas de ação em que o protagonista luta para sobreviver na neve e em que a tripulação lida com uma tempestade de meteoros são visualmente deslumbrantes para os olhos, mas pouco expressivas para os outros sentidos – apreciamos tais impulsos estéticos devido aos efeitos digitais e à fotografia, não graças à tensão quanto aos destinos dos personagens. Em certa medida, é curioso perceber que essas sequências interrompem situações que demonstram sentimentos de Augustine e dos tripulantes (ele, quando é perguntando pela menina Iris sobre seu amor pela esposa, e eles, quando cantam juntos durante o reparo do satélite) e que poderiam ser uma perspectiva para toda a narrativa.

Entretanto, a transição do segundo para o terceiro ato contraria a abordagem insinuada acerca da quebra de emoções em momentos essenciais da existência. “O céu da meia-noite” tenta uma combinação complexa: começar com a estética pela estética em sua beleza plástica e, em seguida, explorar o sentimentalismo do desfecho dos personagens. Tamanha complexidade não é bem resolvida no suposto plot twist de Augustine, nas reações emocionais da equipe frente à conclusão da missão nem no uso de cenas esteticamente belas para além de impulsos visuais de efeitos passageiros. Ao fim e ao cabo, a produção parece uma pintura vazia de emoções que podemos somente contemplar esporadicamente.