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“O CRIME É MEU” – Das subversões à subversão

O que há em O CRIME É MEU é uma mistura subversiva de linguagens, gêneros e épocas. Ainda que existam filmes com uma lógica bastante similar – “Chicago” é um bom exemplo, adicionando, ainda, o gênero musical -, é difícil amarrar elementos distintos com uma metalinguagem elegante como ocorre aqui. Com nível alto de direção, roteiro e atuações, essa mistura não poderia dar errado.

A atriz Madeleine Verdier e a advogada Pauline Mauléon são duas amigas que moram juntas e estão endividadas. Quando Madeleine é acusada de assassinar um produtor famoso, Pauline prepara uma defesa que pode ser a solução para todos os problemas de ambas. Isso se não aparecer alguém que traga outra versão dos fatos.

(© Imovision / Divulgação)

O filme mescla as linguagens de três manifestações artísticas. A primeira delas está em menor medida, é a ópera, presente na citação de “A flauta mágica”, de Mozart, protagonizada por uma das personagens, cuja estreia ocorreu durante a Revolução Francesa e foi por ela axiologicamente influenciada. A segunda linguagem é a do teatro, o que faz sentido primeiramente porque o longa se baseia na peça escrita por Georges Berr e Louis Verneuil. A partir dessa base, o diretor e roteirista François Ozon imprime doses de teatralidade em sua obra, como nos exageros e na própria mise en scène. Os exageros são tanto circunstanciais (a barriga de gravidez de Madeleine) quanto nas atuações – sobretudo no caso de Odette (Isabelle Huppert, se divertindo e divertindo muito a plateia com o pavonear da personagem), o que faz sentido por ser ela uma atriz do cinema mudo. Na mise en scène, destaca-se a prevalência de planos e cenários fechados (transmitindo uma ideia de encarceramento, o que dialoga com a ideia governante da película), além da própria cenografia (por exemplo, na primeira casa da dupla principal predominam cores cinzentas, representando sua situação ruim, ao passo que tons pastéis marcam a nova casa quando estão bem).

A terceira manifestação artística não poderia ser outra que não a cinematográfica, mas mesmo aqui Ozon não faz o óbvio. Abusando da metalinguagem, o cineasta recria cenas de subjetividade mental em estilo similar ao do cinema mudo: em preto e branco, sem diálogos (apenas narração voice over) e com razão de aspecto 4:3. É o que ocorre, por exemplo, quando o Delegado Rabusset (Fabrice Luchini, engraçadíssimo) explica suas versões dos fatos. Quando o espectador se acostuma com esta forma, o diretor faz uma encenação efetiva, tratando-se de um filme dentro do filme (a cena da guilhotina). Ao final, a subversão retorna enganando o público duas vezes seguidas para dizer que nem tudo é o que parece. É a linguagem cinematográfica que também permite à direção o uso do subliminar, como a citação visual do filme “Semente do mal”, quando as duas amigas vão ao cinema (filme de 1934 que tem similaridades com “O crime é meu”), e do sugestivo, como na possível homossexualidade de Pauline (a reação a uma manifestação de carinho de Madeleine ou aos elogios de Odette, a cena da banheira etc.) – tema comum na filmografia de Ozon.

O cineasta mescla gêneros ao se apropriar de um enredo típico de filme noir, com a linguagem compatível – a banalidade do crime, a femme fatale, a complexidade narrativa e a ambiguidade moral – e faz dele uma comédia, ou, mais precisamente, uma sátira. O humor se apresenta em formas diversas, mas principalmente em falas com sarcasmo e ironia (“a Justiça não rouba, ela coleta evidências”, “sejamos razoáveis, vamos nos matar”, “Bonnard, dos pneus? Minhas condolências…” etc.). Há sempre um tom ácido, geralmente como código para o que realmente se quer dizer (quando o Delegado diz “somos sempre os últimos a saber, esses repórteres são terríveis”, há uma crítica ao sensacionalismo midiático). Na mescla do noir com a sátira, tudo é passível de causar riso, até mesmo a banalidade do crime (“este crime não está disponível”); a trilha musical transita entre o suspense e o humor; as características imagéticas são majoritariamente do noir (figurinos de época, por exemplo).

Nadia Tereszkiewicz e Rebecca Marder dão conta dos papéis de, respectivamente, Madeleine e Pauline, com a primeira crescendo a partir do júri e a segunda ficando órfã de um arco narrativo próprio. No elenco estão ainda outros nomes famosos do cinema francês como Dany Boon, André Dussollier e Félix Lefebvre; no geral todos são ótimos. Percebe-se que o filme traduz as mulheres como figuras fortes (Pauline tem uma retórica inteligente, Madeleine não aceita ser amante de André) e os homens com fragilidades diversas (fantoche do pai, André é interesseiro; o Delegado é incompetente; Bonnard é medroso). O noir “puro” também tem essa ideia, mas “O crime é meu” insere nas décadas de 1930 e 1940 o Zeitgeist atual de denúncia ao machismo estrutural, presente na composição do júri, no discurso das autoridades e no pensamento das gerações mais novas. Ou seja, filme alonga o Me Too para uma época distante, em que havia diminuta atenção à subjugação feminina, deixando claro que não por isso ela não existia – e permanece, mesmo que diferente. Essa subversão ainda não ocorreu em sua plenitude.