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“O DEUS DO CINEMA” – Comove e envolve [46 MICSP]

Esta será uma crítica diferente, guardando maior coerência com o modo como O DEUS DO CINEMA foi concebido. Em determinado momento, Terashin diz que os filmes não devem ser racionalizados, mas sentidos. A discussão é um assunto à parte, mas eu vou me manter fiel à maneira pela qual o diretor Yôji Yamada propõe o seu filme.

Também é um assunto à parte a existência ou não de uma divindade de modo geral. No cinema, contudo, o metafísico tem uma força tão especial que é possível, de fato, ter sensações que a razão não compreende. O deus do cinema não abandonou Goh, protagonista do filme de Yamada, à beira de ser abandonado pela própria família. Viciado em álcool e em jogos, sua filha Ayumi e sua esposa Yoshiko precisam encarar a difícil realidade de que ele talvez não tenha solução. Ajudá-lo pode piorar a sua situação.

(© 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo / Divulgação)

Esses problemas mundanos convergem com o aspecto etéreo transmitido pelo cinema. Por ter um pretérito profissional na área, Goh encara a tela como uma ponte para o seu passado, que talvez seja romantizado no início, mas não apresenta apenas recordações doces. Na montagem, a transição do presente diegético para o pretérito diegético é simplesmente soberba – uma pena que as demais transições não demonstrem a mesma habilidade. Pode parecer um detalhe, mas eu me senti viajando para o passado de Goh.

O backstory do protagonista tem seus momentos de glória e me divertiu com a sátira feita aos profissionais do cinema (como se todos fossem boêmios), mas não me fez esquecer dos problemas reais que ele enfrenta agora, pois sua adição por jogos já se fazia presente. O passado é filmado majoritariamente de dia e em cenários claros, o oposto do presente, metáfora para um destino ruim a que ele chegou. Goh é fascinante e parte do crédito atribuo a Kenji Sawada, em atuação excelente para equilibrar o trágico e o cômico da personagem. O arco narrativo de Goh é certamente um drama, pois os vícios criam um muro cada vez mais alto entre ele, de um lado, e a esposa, a filha (ambas ótimas no drama) e o neto Yuta, de outro (aliás, todas as personagens são muito carismáticas, cada uma à sua maneira). Entretanto, o ator consegue expressar um comportamento digno de pena ao se humilhar perante todos para alimentar a própria adição.

É nesse contexto que entra seu amigo Terashin, um coadjuvante que revela surpresas agridoces. Terashin é o único que transita na vida de Goh entre o pessoal e o profissional, dado que eles se conheceram quando o segundo era assistente de direção. Pensei bastante sobre o destino de cada um: qual deles teve uma trajetória mais feliz? Goh teria razão ao afirmar que Yoshiko cometeu um equívoco? É curioso perceber que esse tipo de reflexão é comum para qualquer pessoa (“será que fiz a escolha certa?”) e é bastante caloroso concluir que os filmes estimulam essa e muitas outras reflexões.

Nem todos têm o privilégio de se aproximar do deus do cinema como Goh. O longa elabora lindamente uma trajetória na qual o protagonista parece ficar cada vez mais perto dessa divindade, para então se afastar e, por fim, ficar perto novamente. Essa aproximação só ocorre, contudo, quando ele efetivamente vai ao cinema e revisita sua própria história. É verdade que ele teve participação ativa em muitos dos filmes aos quais assiste, mas tanto eu quanto você já nos deparamos com personagens e narrativas que coincidem muito com nossas histórias de vida ou nossas personalidades.

O deus do cinema se comunica com aquele que com ele quer se comunicar. Os filmes podem ter lições ou emoções inesquecíveis, os melhores fazem com que nos sintamos em suspensão, como se o real deixasse de existir para estarmos dentro da diegese. Em “O deus do cinema”, Goh tem uma ideia inovadora, em termos de linguagem, trazendo o filme para perto do espectador. Porém, isso não é necessário. O filme do qual Goh faz parte é a prova de que filme e espectador podem ser apenas um, unidos justamente pela divindade. A emoção do desespero do protagonista é familiar para qualquer um que tenha sentido desespero um dia em sua vida, valendo o mesmo para seus sentimentos de arrependimento, dor e, claro, amor. O longa de Yamada junta tudo isso em um turbilhão que comove e envolve. Espero que o deus do cinema apresente mais filmes como este.